sábado, 28 de março de 2009

Como Orfeu III



Já quase não havia sol quando voltei para casa, ao fim da tarde. As nuvens cobriam os raios ainda quentes que se ia desprendendo do céu quando, subitamente, me deu uma vontade imensa de visitar a casa da vó velha. Queria só ver, recordar, matar saudades-meninas que ainda me perseguem, de vestido amarelo e sapatos de verniz. Ao jeito de Orfeu, quis olhar para trás, só por um segundo, para ter calmas e certezas e, com esse olhar, como ele, anulei a última hipótese de conservar o que me era querido.

Sem pensar duas vezes, dirigi-me àquele beco estreito que mal consegui reconhecer, parecia-me mais estreito que nunca, como se tudo fosse uma miniatura de um passado-infância. Que saudade imensa. Que desilusão tremenda. Os muros pintados de vermelho e os vasos riscados de cor e carregadinhos de sardinheiras já não existiam. Parei diante do velho portão preto, que havia sido vermelho e, antes disso verde, não que me lembrasse disso, mas porque o desgaste da tinta mo recordou, não contive as lágrimas não-sei-de-quê, que rolavam estupidamente, saíam-me dos olhos, desciam-me pelo queixo e morriam-me no pescoço.

“Porque te martirizas assim?” – perguntou-me. “Porque preciso de ver.” - respondi-lhe eu, não verbalmente, automaticamente. Parei diante da porta principal e fitei o chão cimentado, demoradamente. Como que acto reflexo, empurrei a porta de madeira, à minha direita, que dava para o jardim, para o forno de cozer a broa, para o velho lava-loiça de mármore, para o tanque, para o pedestal de alecrim. O jardim não é agora mais que uma intransponível montanha de silvas, do forno não restavam senão as paredes que ainda conservavam, incredulamente, um branco caiado. Não vi nenhum lava-loiça, nem o tanque, nem o alecrim, como se tivessem sido apenas partes do cenário de um sonho que eu tive e jamais tivessem existido nesta realidade. Vi, apenas, um prato branco esquecido no chão.

Sem poder transpor, mas apenas entrever o jardim que tinha sido meu e tão diferente, sem poder empurrar a porta para aquele pequeno paraíso-criança mais do que um olho pudesse espreitar, dirigi-me, mais uma vez sem pensar, como se fosse ainda a menina do vestido amarelo, até à adega. Não há palavras em dicionário algum que possam descrever o meu espanto perante aquele cenário. A porta da adega estava aberta e não pude deixar de pensar em como me parecia tão maior quando era catraia. O caos, o lixo amontoado, o nada que restara, a certeza de outras presenças por ali deram-me vontade de fugir daquele sítio, que um dia me tinha sido tão querido.

Olhei para trás à procura das andorinhas de barro pintado que estavam penduradas na parede da casa, ao lado da porta de entrada, mas elas não estavam. Não me lembro de alguma vez ter reparado no Santo António que está mesmo por cima da porta, a segurar o Menino, como tu me seguravas. A medo estendi a mão para a porta gasta, senti-lhe as rugas de outros tempos, quase a mesma alegria com que sempre entrava por ali, num furacão de risos. Empurrei-a e a porta cedeu o suficiente para que eu pudesse reconhecer, lá bem ao longe, no fundo dos destroços, o papel de parede com um padrão em tons de laranja. Como é possível ter-me esquecido dele? E onde estaria o Fiel, o cão de loiça que a vó velha sempre disse que haveria de ser meu? Debaixo dos destroços, com certeza, quebrado em puzzle impossível de terminar. Afinal os cães de loiça também têm o seu prazo de vida e o do Fiel, para dálmata e loiça, foi bastante bom. De olhar desperto procurei aquilo que era a cozinha, as escadas para o andar de cima, tentei reconhecer o sofá da sala e o cadeirão branco, de palhinha. Nada. Para onde teriam levado tudo?

Virei costas, desoladas, por não reconhecer aquela casa, por ser apenas e vagamente parecida com a casa da vó velha da minha infância. Voltei a olhar a fachada rosa e alta Já nem me lembrava daquelas janelas pequeninas nos andares superiores. Ainda tinham as cortinas de renda branca. A parede conservava, teimosa, o painel de azulejos, azul e branco, lá no alto, com a imagem do Santo António. Intacto. Escapou-me um sorriso por entre as lágrimas quando vi uma menina de tranças loiras, a espreitar pela janela do topo, com os seus olhos-girassóis. Ainda é a tua casa, vó velha. Já me lembro. Vejo-te no fogão a fazer sopa de legumes, poiso o açucareiro bojudo com a estampa de um gato preto na mesa redonda, subo as escadas até ao teu quarto e espreito, pela centésima terceira vez o vestido de casamento da avó, subo mais um andar e ponho-me à janela, sentada numa cadeirinha baixa, à espera que venhas contar-me, mais uma vez, a história da velha e da cabaça.

Fechei os olhos e só os abri quando já só via a saída do beco estreito. Quero deitar fora a imagem dos destroços de agora para, no lugar dela, colar a imagem da casa tosca e rosa da vó velha, da minha infância, que um dia quis para mim.

«Milímetros»

«(sensações de coisas mínimas)

Como o presente é antiquíssimo, porque tudo, quando existiu foi presente, eu tenho para as coisas, porque pertencem ao presente, carinhos de antiquário, e fúrias de coleccionador precedido para quem me tira os meus erros sobre as coisas com plausíveis.

As várias posições que uma borboleta que voa ocupa sucessivamente no espaço são aos meus olhos maravilhados várias coisas que ficam no espaço visivelmente. As minhas reminiscências são tão vívidas que [?] .

Mas só as sensações mínimas, e de coisas pequeníssimas, é que eu vivo intensamente. Será pelo meu amor ao fútil que isto me acontece. Pode ser que seja pelo meu escrúpulo no detalhe. Mas creio mais - não o sei, estas são as coisas que eu nunca analiso. - que é porque o mínimo, por não ter absolutamente importância nenhuma social ou prática, tem, pela mera ausência disso, uma independência absoluta, de associações sujas com a realidade. O mínimo sabe-me a irreal. O inútil é belo porque é menos real que o útil, que se continua e prolonga, ao passo que o maravilhoso fútil, o glorioso infinitesimal fica onde está, não passa de ser o que é, vive liberto e independente. O inútil e o fútil abrem na nossa vida real intervalos de estética humilde. Quanto não me provoca na alma de sonhos e amorosas delícias a mera existência insignificante dum alfinete pregado numa fita! Triste de quem não sabe a importância que isso tem!

Depois, entre as sensações que mais penetrantemenete doem até serem agradáveis, o desassossego do mistério é uma das mais complexas e extensas. E o mistério nunca transparece tanto como na contemplação das pequeninas coisas, que, como se não movem, são perfeitamente translúcidas a ele, que param para o deixar passar. É mais difícil ter o sentimento do mistério contemplando uma batalha, e contudo pensar no absurdo que é haver gente, e sociedades e combates delasé o que mais pode desfraldar dentro do nosso pensamento a bandeira de conquista do mistério - do que diante da contemplação duma pequena pedra parada numa estrada, que, porque nenhuma ideia provoca além de que existe, outra ideia não pode provocar, , se continuarmos pensando, do que, imediatamente a seguir, a do seu mistério de existir.

Benditos sejam os instantes, e os milímetros, e as sombras das pequenas coisas, ainda mais humildes do que elas! Os instantes, [?]. Os milímetros - que impressão de assombro e ousadia que a sua existência lado a lado e muito aproximada numa fita métrica me causa. Às vezes sofro e gozo com estas coisas. Tenho um orgulho tosco nisso.

Sou uma placa fotográfica prolixamente impressionável. Todos os detalhes se me gravam desproporcionadamente a haver um todo. Só me ocupa de mim. O mundo exterior é-me sempre evidentemente sensação. Nunca me esqueço de que sinto.»



Livro do Desassossego,
Bernardo Soares

sexta-feira, 27 de março de 2009

Dia Mundial da Poesia

Hoje não é o Dia Mundial da Poesia. Esse dia já passou, no bom senso de todo o mundo. Mas a mim apetece-me que o Dia mundial da Poesia seja hoje. Pode ser? Aprovaria o mundo que assim fosse? E também quero comemorar a poesia amanhã, durante o fim-de-semana, o ano inteiro. O que é o Dia Mundial da Poesia, afinal? É um dia que os homens decidiram ser destinado a recitar e ouvir recitar poemas? Gosto de ouvir Villaret a dizer poemas, mas qualquer dia me parece bom para o fazer.

Poesia é todos os dias. É o que já passou, o que sucede ou o que pode vir a acontecer. Não podemos tocar a poesia nem fazê-la parar por instantes, muitos não sabem onde encontrá-la, nem eu conheço todos os seus recantos porque, ínfima, se recolhe sob qualquer pétala, qualquer pedra. No entanto, afigura-se-nos tão espampanantemente singela no abrir de um botão de rosa, no riso sincero dos garotos, na languidez das tardes quentes, na voz da mãe, nos grãos de areia que invadem os pés descalços, na caligrafia do avô, na espuma das ondas, nos olhos de um gato, nos nossos próprios olhos e, até, nas nossas próprias lágrimas.

O poeta é o artista ímpar que tem o dom de usar as palavras certas, pintor único da beleza do pormenor, que comete, por vezes, a ousadia de rimar estórias e glosar sentimentos. É o estóico e o epicurista, o realista e o utópico, o novelista e o modernista, o conservador e o experimental. Não é um fazedor de poemas, é um arquitecto de sensações lexicalizadas.

Dia mundial da poesia. E recordo Villaret a dizer Liberdade

«Ai que prazer
Não cumprir um dever,
Ter um livro para ler
E não o fazer!
Ler é maçada,
Estudar é nada.
O sol doira
Sem literatura.

O rio corre, bem ou mal,
Sem edição original.
E a brisa, essa,
De tão naturalmente matinal,
Como tem tempo não tem pressa...

Livros são papéis pintados com tinta.
Estudar é uma coisa em que está indistinta
A distinção entre nada e coisa nenhuma.

Quanto é melhor, quando há bruma,
Esperar por D. Sebastião,
Quer venha ou não!

Grande é a poesia, a bondade e as danças...
Mas o melhor do mundo são as crianças,
Flores, música, o luar, e o sol, que peca
Só quando, em vez de criar, seca.

O mais do que isto
É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finanças
Nem consta que tivesse biblioteca...»

quarta-feira, 25 de março de 2009

Como Orfeu II


Não resisto, qual Orfeu desobediente, a espreitar as brechas fugazes que o passado vai semeando, portas encostadas ao acaso que alguém se esqueceu de fechar. Antes as tivessem trancado para sempre e o pensar não doía na memória. As minhas mãos estendem-se para as fotografias velhas e os dedos ébrios tentam trazer de volta aqueles rostos baços, que tempo vai tentando apagar.

Porque olhaste para trás, Orfeu? Atrás agora é abismo e nada, e esse nada nublado e desconhecido é a base do terror da morte que só os orates, sãos dos olhos, ignoram sabiamente. Preocupamo-nos com a morte ansiosamente, desesperadamente, mesmo que não tenhamos consciência disso. Deixamos de lado os mistérios ocultos da própria morte, ou porque não queremos sequer pensar nisso, ou porque todas as teorias que tentam explicá-los acabam por nos parecer densamente ocas, consistentemente vagas, conscientemente absurdas. O que realmente nos aterroriza é a ausência física, um nunca mais tornar a ver, nunca mais ouvir, nunca mais cheirar. A mudança irreversível que faz crescer por dentro uma certeza de fim, de um inevitável nunca mais. Queria tanto poder acreditar na tentada teoria reconfortante que nos faz crer que a morte é um sono agradável, um eterno descanso. Mas recuso-me a acreditar nisto pelo simples terror de pensar num sono do qual jamais se acorda. É absurdo e aterrador. Desassossego-me. «Pequena vida consciente, sempre/ Da repetida imagem perseguida/ Do fim inevitável». (Ricardo Reis)

Foi quando os “comedores de lótus” do professor Delfim devoraram Satyricon que a consciência do fim de tudo e da visão de um imenso nada se abateu sobre a minha cabeça e foi trepando, gananciosa, a montanha dos meus medos intrínsecos. Lembro-me do meu próprio espanto perante o espanto de Encólpio e Gíton no festim de Trimalquião. O anfitrião apreciava, realmente, o requinte ostensivo, o espectáculo de si mesmo, o que o fazia cair no abismo do ridículo e do mau gosto. No entanto, os seus gestos apotropaicos, a bizarra encenação da sua própria morte, a preparação prévia de um epitáfio e uma curiosidade imensa quanto às reacções dos outros perante a sua partida não me pareceram atitudes totalmente absurdas. O que ele tinha era uma infinda e assustadora consciência da contagem decrescente do tempo de uma vida. Ao contrário de Trimalquião, eu sou avessa aos tiquetaques dos relógios, ao bater das horas porque, tal como ele, tenho plena consciência de que cada tiquetaque é um ladrão de vidas, um pulha que nos grita finitude. E como será a reacção dos que me são próximos? Que dirão de mim? Escrever-me-ão versos no epitáfio ou terei de ser eu mesma a fazê-lo? O que farão com as coisas que guardo com carinho? Que restará de mim senão memórias?

Porque continuo a olhar para trás, como Orfeu? Olharia Trimalquião para o seu passado no pouco tempo em que não se preocupava com o futuro? Eu continuo esperar, de olhos bem abertos, rasgos de outros tempos para neles me perder, propositadamente. E então, quando o passado me leva de volta por instantes, fecho muito os olhos para ver os meus mortos queridos, para que voltem a ser presente, para que nunca lhes esqueça a voz e possa sempre saber de cor os traços dos seus rostos quando sorriam. Despiram os trajes da vida e deixaram-nos por aí, ferrões aguçados no fundo da memória. A bata florida e desbotada da vó velha parecia ainda ter no bolso direito o chocolate que comprava na mercearia e que era só para mim. Quando encontrei a boina axadrezada do avô, esquecida no velho toucador, embora soubesse que tinha sido lavada, quis sentir-lhe o cheiro dos cabelos que penteava meticulosamente, depois de tirar o pente castanho do bolso traseiro das calças. A camisola vermelha que te conhecia, levaste-a contigo, e, ao vê-la vestida no teu corpo inerte, nesse último dia, fez-me temer destapar-te a face para te beijar, amigo, porque quero recordar para sempre o teu rosto menino. Estas são quase presenças vagas que parecem querer, por breves instantes, compensar as ausências abismais. São conforto em forma de lágrimas.

Guardo no fundo não sei bem de quê nem onde todas as memórias-cheiro, memórias-sorriso, memórias-palavra, memórias-segredo, para com elas me reconciliar e poder ver, com mais clareza, o meu futuro. Não quero nunca desfazer-me das minhas memórias como se faz aos livros que contam as histórias de antigamentes, quero antes levá-las (sim, levá-las, não carregá-las, mas transportá-las com leveza) comigo pela vida fora, porque a ela pertencem, e torná-las vivas em palavras-história. Os meus mortos queridos deixaram muitas histórias por/para contar. Encarregar-me-ei disso. Sem lágrimas, um dia.

[Festim de Trimalquião]

«Tinha chegado já o terceiro dia, aquele em que esperávamos ganhar um jantar livre de entraves, mas sentíam-nos tão abatidos com aquelas provações que mais nos agradava a fuga que o descanso. E assim, era sem ânimo que discutíamos a maneira de nos livrarmos da presente aflição, quando um escravo de Agamémnon nos deixou em sobressalto, ao anunciar:
- Então? Vocês não sabem em casa de quem se faz hoje a festa? É Trimalquião, um tipo cheio de classe, que tem na sala de jantar um relógio e um corneteiro todo aperaltado, para saber, a cada momento, quanto tempo da sua vida se escoou.»

Satyricon, Petrónio
tradução de Delfim Leão

terça-feira, 24 de março de 2009

40.

«Sinto-me às vezes tocado, não sei porquê, de um prenúncio de morte... Ou seja, uma vaga doença, que se não materializa em dor e por isso tende a materializar-se em fim, ou seja, um cansaço que quer um sono tão profundo que o dormir lhe não basta - certo é que sinto como se, no fim de o piorar de um doente, por fim largasse sem violência ou saudade as mãos débeis de sobre a colcha sentida.

Considero então que coisa é esta a que chamamos morte. Não quero dizer o mistério da morte, que não penetro, mas a sensação física de cessar de viver. A humanidade tem medo da morte, mas incertamente; o homem normal bate-se bem em exercício, o homem normal, doente ou velho, raras vezes olha com horror o abismo do nada que ele atribui a esse abismo. Tudo isso é falta de imaginação. Nem há nada menos de quem pensa que supor a morte um sono. Porque o há-de ser se a morte se não assemelha ao sono? O essencial do sono é acordar-se dele, e da morte, supomos, não se acorda. E se a morte se assemelha ao sono, deveremos ter a noção de que se acorda dela. Não é isso, porém, o que o homem normal se figura: figura para si a morte de um sono de que não se acorda, o que nada quer dizer. A morte, disse, não se assemelha ao sono, pois no sono se está vivo e dormindo; nem sei como pode alguém assemelhar a morte a qualquer coisa, pois não pode ter experiência dela, ou coisa com que a comparar.»


A mim, quando vejo um morto, a morte parece-me uma partida. O cadáver dá-me a impressão de um trajo que se deixou. Alguém se foi embora e não precisou de levar aquele fato único que vestira.»

Bernardo Soares,
Livro do Desassossego (fragmento 40)

terça-feira, 17 de março de 2009

(ir)realidade interior do exterior

Era aqui que eu queria chegar quando falei da adequação linguística de cada falante ao Mundo que percepciona, que é de todos e é só seu. Era isso e muito mais, esse mais já posto em palavras por Soares e, possivelmente, já pensado por outros que disto se lembraram. Era mesmo isso, e não só.

Eu não invejo a partilha de sensações com outros, porque as minhas não são as de outros, embora me conforte, de certa forma, o saber que não estou sozinha perante um qualquer espanto, um rasgo de beleza, uma tristeza infinda. Tenho para mim cada sensação como marcadamente distinta das sensações de outros perante uma mesma realidade ou um sonho idêntico. Mas se, por um instante, me parecer que a sensação que é minha está tão próxima da de outro ao ponto de quase se confundirem, sinto o cofre da minha alma devassado, como se me entrassem dentro dos pensamentos mais oblíquos e me roubassem o incalculável tesouro da individualidade sensacional. Esse instante passa num de repente, porque volto a cair na doce ilusão dos sentidos que sei serem exclusivamente meus.

Recordo a cameleira, que não consigo ignorar quando passo, e penso na verdade dos olhares que sobre ela já caíram e dos pensamentos que ela terá suscitado, muito possivelmente semelhantes aos meus. Inquieto-me. E não duvido que tenham reparado nas flores que se curvam por debaixo dela, numa servidão de flor primaveril, efémera por isso ainda mais bela, porque é assim que funciona, porque tudo o que é raro ou irremediavelmente finito tem mais valor que um diamante de data de validade vitalícia. Desassossega-me saber que o jardim que queria só meu não é invisível aos outros olhos que por ele passam, mas sossego imediatamente, de educada que fui, também, pelo meu Mestre, a esbugalhar os olhos e a absorver a paisagem que eles me mostram e, depois, reformulá-la por dentro, escutando a música leve que solta e nos segreda sonhos, cheirando-a e deixando-nos levar numa viagem olfactiva a realidades que nunca tenham, talvez, existido. Quando era miúda e o vento soprava por entre o eucaliptal, empoleirava-me no muro caiado de branco e cantava, porque o eucaliptal era uma plateia em delírio com a estrela que era eu e cada eucalipto era um indivíduo e o vento que os fazia sibilar era uma espantosa ovação no fim de cada música. É este o mistério da substituição do visível: escutar com os ouvidos e com os olhos de quem sonha o que o interior de um exterior real nos diz, individualmente. E mais do que ver e escutar, é importante que se sigam os instintos que a paisagem nos provoca, viver o sonho da irrealidade tornada verdade, nem que por breves instantes.

No Cais do Sodré viste um pagode chinês. Eu, por entre as laranjeiras do quintal, que eram naquele agora, que não sei quando foi, cerejeiras floridas, vi todo o esplendor de um fim de tarde em Kyoto: sob os ramos das cerejeiras espreitei as mulheres que apreciavam cada nanossegundo da queda de uma flor, desde o momento em que, tragicamente, se desprende da árvore, se desfaz em pétalas de uma rara leveza cor-de-rosa, até que cai no chão, desfeita, e se deixa levar pela brisa. Quase posso jurar que passou por mim uma borboleta e que deixou no ar um cheiro a chá verde e a jasmim, havia lanternas e fogo de artifício, pareceu-me ouvir, ao longe, o farfalhar sedoso dos kimonos e os estalinhos suaves dos passos que as mulheres iam deixando pela relva.

O cheiro das laranjas doces trouxe-me de volta ao jardim que já conhecia, arrancou-me do outro jardim onde nunca estive, mas sei-o.

«A DIVINA INVEJA»

«Sempre que tenho uma sensação agradável em companhia de outros, invejo-lhes a parte que tiveram nessa sensação. Parece-me um impudor que eles sentissem o mesmo do que eu, que me devassassem a alma por intermédio da alma, unissonamente sentindo, deles.

A grande dificuldade do orgulho que para mim oferece a contemplação das paisagens, é a dolorosa circunstância de já as haver com certeza contemplado alguém com um intuito igual.

A horas diferentes, é certo, e em outros dias. Mas fazer-me notar isso seria acariciar-me e amansar-me com uma escolástica que sou superior a merecer. Sei que pouco importa a diferença, que com o mesmo espírito em olhar, outros tiveram a paisagem um modo de ver, não como, mas parecido com o meu.

Esforço-me por isso para alterar sempre o que vejo de modo a torná-lo irrefragavelmente meu – de alterar, mantendo-a mesmamente bela e na mesma ordem de linha de beleza, a linha do perfil das montanhas; de substituir certas árvores e flores por outras, vastamente as mesmas diferentissimamente; de ver outras cores de efeito idêntico no poente – e assim crio, de educado que estou, e com o próprio gesto de olhar que espontaneamente vejo, um modo interior do exterior.

Isto, porém, é o grau ínfimo de substituição do visível. Nos meus bons e abandonados momentos de sonho arquitecto muito mais.

Faço a paisagem ter para mim os efeitos da música, evocar-me imagens visuais – curioso e dificílimo triunfo do êxtase, tão difícil porque o agente evocativo é da mesma ordem de sensações que o que há-de evocar. O meu triunfo máximo no género foi quando, a certa hora ambígua de aspecto e luz, olhando para o Cais do Sodré nitidamente o vi um pagode chinês com estranhos guizos nas pontas dos telhados como chapéus absurdos – curioso pagode chinês pintado no espaço, sobre o espaço-cetim, não sei como, sobre o espaço que perdura na abominável terceira dimensão. E a hora cheirou-me verdadeiramente a um tecido arrastado e longínquo e com uma grande inveja de realidade…»




Livro do Desassossego,

Bernardo Soares

quarta-feira, 11 de março de 2009

«Eu não escrevo em português.»

Aprende-se, estudando linguística, que o falante tem liberdade para se apropriar do léxico para criar os seus próprios enunciados e que é ele o único responsável por manter a língua como organismo vivo, em constante mutação. Só não se aprende, porque ainda ninguém conseguiu descobrir, quais são e como funcionam os mecanismos mentais activados pelo sujeito para uma proeza tão banal: falar, escrever, pôr em palavras o mundo extra-linguístico, o suposto palpável que nos rodeia.

Bernardo Soares deixou-nos o palpite. Guiemo-nos por ele durante breves instantes. Pensemos, por exemplo, na palavra “água”. Em qualquer língua que seja, toda a gente lhe conhece o significado, a definição canónica, as suas principais características e utilizações possíveis. O cérebro de cada um tem, com certeza, incontáveis informações acerca da água, mas o saber que dela universalmente partilhamos é claramente geral, assustadoramente oco. Além da definição de água que é partilhada, cada indivíduo a descreve ou pensa no seu conceito sem nunca se desligar da sua própria relação com a própria água, do prazer que é só seu de tomar um banho quente, da sofreguidão com que a bebe quando tem sede e de como fica saciado. Todos o fazem, mas cada um se apercebe do mesmo à sua própria maneira.

Os japoneses, por exemplo, têm duas palavras para “mãe”. Fazem uma distinção muito clara quando se referem à mãe de outrem e à sua própria mãe. Não terá isto toda a lógica do mundo? Se todos sabemos o que é uma “mãe”, mas se todos pensamos na nossa própria mãe como diferente de todas as outras, não deverá ela ser mais do que o vago conceito do ser que nos trouxe ao mundo? A “mãe”, como todos a imaginamos, é aquela que nos acarinha e trata de nós, que cozinha e arruma a casa, que nos beija a testa e nos vai carregando pela vida, que é mulher corajosa e “pau-para-toda-a-obra”. Mesmo assim, esta “mãe convencional”, ou “mãe desejável”, é sempre diferente da nossa, porque a mão que nos acarinha não é a mesma, porque o seu cheiro é especial, porque a boca com que nos beija é só dela e aquele beijo é exclusivamente nosso.

Esta manhã olhei pela janela e o céu estava azul e o sol já brilhava como deve em tempo de Primavera. Mas os outros já o sabiam. Reparei, mais uma vez, em como o pinhal voltou a verdejar em tão pouco tempo. Tantos outros repararam no mesmo. As grandes pintas amarelas, ao longe, no limoeiro da vizinha, chamaram-me a atenção e olhei para elas demoradamente. Outros já o fizeram. Deixei cair os olhos nas folhas escuras da cameleira, nas hortênsias que despontam, nas violetas que vão murchando, na gata malhada que passa e me olha, sorrateiramente. Nada que outros não tenham visto já. Tudo acaba por parecer banal, mas a questão é que eu não falo nem escrevo português. Eu, tal como todo o pensante-falante-que-também-escreve, mordo a linguagem e faço com que se entranhe em mim e seja parte do que sou.

Não pretendo, de forma alguma, tornar isto que escrevo numa enfadonha recensão sobre a apropriação do sistema linguístico por parte do falante. Quero só estar certa de que cada palavra tem em si uma explosão de individualidade. Escrevo na língua com que penso, que foi a que inventei para realizar em palavras mentais ou impressas aquilo que percepciono do Mundo, perante o qual sempre me espanto, ao qual vou adaptando a língua que há. O céu, pinto-o eu com o meu azul-de-céu e o sol tem a forma e o brilho que só eu lhe sei. O pinhal tem o meu próprio verde-luz que nasce ante os meus olhos. Conheço os limões de amarelo-ácido que apenas vejo no quintal da vizinha melhor do que ela. E as folhas da cameleira, só eu sei como são verdes-verdes, como os olhos da Joaninha de Garrett, porque as vi verdejar a cada manhã. Conheço a paleta de cores de cada folha de hortênsia, porque fui eu que as pintei a aguarela, e se-lhes o tacto porque lhes passei os dedos mil vezes cem mil vezes. Ninguém, melhor do que eu, sabe porque nasceram misteriosamente, diz-se, as violetas, que se escondem por debaixo das hortênsias, sei que murcham porque se sentem cansadas do seu luto-roxo. Só eu sei ler, nos olhos amarelos da gata malhada, a saudação matinal e gozona que só os gatos sabem fazer e que nos deixa preso aos lábios um sorriso de manhã de sol.

segunda-feira, 9 de março de 2009

442.

«Que de Infernos e Purgatórios e Paraísos tenho em mim – e quem me conhece um gesto discordando da vida… a mim tão calmo e plácido?

Eu não escrevo em português. Escrevo eu mesmo.»



Bernardo Soares, Livro do Desassossego (fragmento 442)

quarta-feira, 4 de março de 2009

Fui ver «As Vespas»


Ontem fui ver As Vespas. Entrei na sala do Paulo Quintela e aquele palco iluminado, a velha cortina de veludo azul, a ausência de conferencistas enfadonhos encheu-me de ânsia de ver a peça de Aristófanes. As luzes apontavam para Xântias, que relatava ao público, com uma voz-quase-segredo de escravo esfadengado, de cotovelo apoiado no joelho, cara encostada à mão, a história do velho Filócleon, que padecia de um terrível mal: o vício de julgar. Por isto Bdelícleon, filho do velho juiz, encarrega Xântias e o seu outro escravo, Sósias, de vigiarem o local onde tinha enjaulado o próprio pai, temendo que o velho fugisse durante a noite com outros juízes, seus amigos.

Eis quando, para espanto do público, durante uma encenada distracção dos dois escravos, um cortejo de velhos juízes, cobertos com os seus mantos e trazendo as suas lanternas, irrompe sala adentro chamando pelo seu velho amigo Filócleon. Empenhados em ajudá-lo a escapar, deixam cair os mantos e revelam os seus trajes negros, riscados de amarelo, cada um com o seu ferrão aguçado para espicaçar quem achassem que deveria ser julgado. Eram as vespas! E como se moviam sorrateiramente, empunhando o grande ferrão!

Apesar da sua ancestral e bem estudada estratégia, as vespas perderam a luta contra os escravos, curvadas já de velhice. Aceitando, sem outro remédio, a proposta de Bdelícleon, que havia conjecturado tudo para bem de seu pai, organizam-se para constituir o júri de um tribunal caseiro, ali mesmo no pátio, onde julgam o caso de um cão que era acusado por outro de ter roubado um queijo.

Mais tarde, numa discussão com o pai, Bdelícleon faz-lhe perceber os prazeres do homem boémio, contador de histórias, que se embriaga em faustosos banquetes, que aprecia a languidez do absurdo. E assim acabou a peça, em ambiente de festa, onde até o coro de vespas se juntou a uma dança contagiante.

O pano caiu. Os actores agradeceram e foram aplaudidos de pé. O público deixou a sala, já caída em silêncio. Saio calada e penso para dentro. Não seremos nós, convictos boémios, amantes do ócio dionisíaco, umas vespazinhas também? Não nos vestimos de negro riscado de amarelo, mas temos semelhantes ferrões, não na forma, mas na capacidade aguçada de ferrar. Padecemos do mesmo mal de Filócleon: uma terrível e incontrolável tendência para julgar.

terça-feira, 3 de março de 2009

«As Vespas»

«XÂNTIAS (depois de ter trancado a porta, sente que algo lhe cai em cima)
Ai de mim, desgraçado! De onde me caíu este torrão em cima?


BDELÍCLEON
Às tantas foi um rato que to atirou lá do alto.


XÂNTIAS
Um rato? Nada disso, caramba! É mas é um desses juízes, enfiado debaixo das telhas, um juíz de telhado.


BDELÍCLEON (olhando para o telhado)
Ai meu Deus, que azar o meu! Ali está o nosso homem armado em pardal. Vai levantar voo. Onde, onde raio está a rede? (Para Filócleon, como quem assusta um pássaro.) Xô, xô, toma lá outra, xô! C'um raio, melhor fora montar guarda a Escione do que aqui ao meu pai. (Filócleon é neutralizado e empurrado para dentro de casa.)


XÂNTIAS
Mas vá! Agora que prendemos de vez o nosso homem e que finalmente ele não arranja maneira de fugir, porque não tiramos só... só uma soneca?


BDELÍCLEON
Qual quê, esgraçado! Daqui a nada estão por aí a romper os amigos dele, os juízes, aos berros a chamar pelo meu pai.


XÂNTIAS
O que raio estás a dizer? Se só agora começa a amanhecer.


BDELÍCLEON
C'os diabos, tens razão! Hoje levantaram-se mais tarde. É que costumam aparecer a meio da noite, de lamparina na mão e a trautear umas modinhas delicodoces de Frínico para chamar por ele.


XÂNTIAS
Pois bem, se tiver que ser, enxotamo-los logo à pedrada.


BDELÍCLEON
Mas, ó meu patego, a raça deles é tal, que se se irrita um desses velhotes, comportmam-se como as vespas. E têm mesmo um aguilhão bem afiado que lhes sai pelo rabo, com que picam; dançam ao som dos seus zumbidos, e é vê-los atacar como raios.


XÂNTIAS
Não te preocupes. Enquanto tiver pedras à~mão, sou capaz de enxotar qualquer enxame de vespas.


[...]


CORO
Vamos! Toca a dar à perna por um bocadinho, todos nós, para ajudar à festa e para que estes possam rodopiar, à vontade,à nossa frente. (O coro divide-se em dois semi-coros. Um deles rodeia Filócleon e o outro os filhos de Cárcino. Ambos os grupos mostram as suas habilidades na dança.)
Vá, ilustres crias do Senhor dos Mares! Dançai na areia e na praia do mar não vindimado, ó irmãos dos camarões! Façam girar com rapidez os vossos pés, que cada ummande pontapés à moda de Frínico, de modo que os espectadores, ao verem a perna ir ao ar, soltem os seus "oh-op!" Toca a girar, dança em círculo e bate na barriga. Manda uma perna ao ar, perde-te em piruetas! (Entra uma figura vestida de caranguejo, representando o próprio Cárcino.) Aí está o vosso pai, o senhor absoluto das marés em pessoa, todo inchado pelos filhos que tem, os três dançarinos.
E agora, se vos agrada, deixai-nos sair a dançar, e depressa! É que nunca antes alguém se atreveu a semelhante proeza: terminar com danças um coro de comédia.


A dança prolonga-se durante alguns segundos. Saem todos.
»



As Vespas
, Aristófanes, apresentada ao público pela primeira vez em 422 a.C.
tradução do Grego de Carlos Martins Jesus

segunda-feira, 2 de março de 2009

Alquimia Guineense

Pintada de vermelho-sangue, desagrilhoando-se das memórias que lhe impôs o cão-tinhoso-de-olhos-azuis, tenta nascer com cada sol a Guiné, sustentada apenas em esperanças batucadas em silêncio, em promessas de ventos brandos capazes de mudar o destino de uma nação. Guiné agachada sob as chuvas de balas, despedaçada a cada disparo, Guiné cansada, sobretudo, de esperar pela sombra apaziguadora que há-de vir, quando se ouvirem «os sinos das sementes» que plantaram de olhos postos num futuro sossego.

Foi-te feita essa promessa e, no fim de contas, quando tudo parece perdido, encontras sempre um estilhaço de esperança cravado em ti. Quando mataste o cão-tinhoso, certa de que serias dona de ti mesma, não reconheceste, ofuscada pelo brilho da liberdade, o pomo da discórdia que te fora deixado, como uma ingénua e infinda maldição. Querendo tomar as rédeas do teu destino, dividiste-te em mil partidos e esqueceste a tão almejada comunhão, que sempre havia sido teu pregão e tua bandeira.

Espera, Guiné, que a penumbra há-de transformar-se em sombra amena e, sob essa sombra, hás-de ouvir o tilintar da semente que, crente, plantaste pela tua Pátria moribunda, porque, à moda dos alquimistas, procuras a todo o custo transformar em fé a tua dor.



Nota (facto que, mais tarde, se tornará uma simples efeméride): João Bernardo Vieira, “Nino” era o seu nome de guerra, presidente da Guiné-Bissau, foi assassinado a 2 de Março de 2009. Alegadamente, como retaliação do atentado à bomba que havia vitimado, no dia anterior, o General Batista Tagme Na Vaie.

«Guiné Querida»

«No plasma quente do teu dorso
erguem-se novos túmulos de Almas
Caciças abatidas por balas
vindas do acaso
No labirinto dessa dor sufocante
renasce a esperança de te ver
mais una, mais digna
Guiné querida!
Hoje despedaçada
timbrada com sangue indelével
aromatizada de sal e mercúrio
transformada no santuário
do mal e do ingénuo
No horizonte do teu âmago
vislumbra debaixo da penumbra da árvore gigante
uma sombra suavizante
e viveremos na comunhão almejada
com a palavra do mano
um justo valor e sentido para todos
Guiné callente
Guiné valente
negue ser murnhengo
mesmo que acabe o pão e o açúcar
desde que haja água
desde que haja terra
De Boé a Bedanda
de Quebo a Cacheu
soou o batuque da esperança
a tempestade serve bonança
a semente da tua crença
alimenta bocas famintas
de vento de sossego de carinho
na sombra da tua penumbra.»


Mussá Turé, poeta guineesnse

domingo, 1 de março de 2009

Como Orfeu

Ás vezes, como um Orfeu que insiste em olhar para trás, ainda me imagino a entrar em casa da vó Velha. Depois do almoço, nas tardes de sol, corria até aquele portão de ferro, pintado de vermelho. Olhava os vasos coloridos e as andorinhas de barro presas na parede, espreitava a adega, à esquerda e, sem a ver, gritava «vó Ninita!» … Bastava-me o cheiro, que ainda hoje não sei explicar, para saber que ela estava a cozer broa. Lá abria eu a velha porta de madeira, à direita, que dava directamente para o quintal, deitava um olhar às roseiras e às plantas de chá, e ia ter com ela ao compartimento do forno, empoeirado, chamuscado, e lembro-me das grandes pás e das vassouras para raer as cinzas que ficavam.

A vó Velha foi padeira lá para os lados de Ançã. Vinha de uma família pobre, com certeza. Tinha mais de dez irmãos, muitos morreram novos, como era costume na época, e nunca cheguei a conhecer nenhum deles. Era, então, padeira, e eu gostava de a ouvir falar dos tempos em que vinha de barco para Coimbra, distribuir o pão. Talvez a minha trisavó também tenha sido padeira, nunca cheguei a perguntar. Entretanto a Ninita casou com um senhor viúvo, o bisavô Aníbal, que conheço das raras fotografias que ainda temos, e que tinha já uma filha, a minha tia Luz. Depois tiveram dois filhos, a minha avó Alice e o meu tio Gabriel, que ficaram órfãos de pai muito cedo, que vestiam camisas negras e mostravam um ar de felicidade incompleta em todas as fotografias que ficaram. Mais tarde a vó Alice casou com o meu avô Abílio, meu Mestre, que está para mim como Caeiro para Ricardo Reis. A vó Velha nunca gostou do vô Abílio. Na verdade, fazia-lhe “a vida negra”, somente porque na altura era costume as sogras abominarem o genro ou a nora, e vice-versa. Neste caso, o meu Mestre tinha o dom de reagir com infinita serenidade perante qualquer crítica ou provocação. Já quando o meu tio casou, o ódio que existia entre a vó Velha e a minha tia era qualquer coisa tão nítida e consistente que faiscava à vista de todos. Talvez tenha sido por isso que elas estiveram cerca de quarenta anos de costas viradas. Ainda não me contaram essa história, como realmente aconteceu essa ruptura até à morte.

Mas voltemos a casa da vó Velha, há mais de dez anos, a broa quente com manteiga, o leite fresco bebido por uma malga. Como me sabiam bem aqueles lanches. Depois brincava no jardim, subia as escadinhas do canteiro mais alto só para cheirar o alecrim, como se fosse um tesouro e eu gostasse de ver apenas como reluzia. E era mesmo. Depois de lavar a louça numa grande bacia encastrada em pedra mármore, cá fora, a vó Velha punha detergente num copo, ia cortar um pedacinho de uma cana, e dava-me divertimento para o resto da tarde: eu fazia bolas de sabão e gostava de as ver rebentar nas flores, quando elas caíam, docemente, sobre as grandes pétalas coloridas. Mal acabasse o líquido mágico, corria para o sótão e brincava dentro dos grandes cestos de vime. Gostava de olhar pela janela pequenina enquanto ela me ensinava a «Ave-maria» e aquela ladainha que ainda tenho no ouvido «Jesus pequenino, que guardas a chave do Paraíso…». Não me lembro de mais, mas vêm-me à memória tantas outras coisas… a forma como entrançava os seus longos cabelos brancos, como prendia a trança comprida com o travessão negro enquanto me falava do antigamente. Lembro-me de que tinha sempre um Mars para mim, escondido no bolso da bata, dos vestidos que tricotava para as minhas bonecas, do dálmata de louça, o Fiel, dos caramelos espanhóis que me trazia das excursões, do velho relógio de parede que me estava prometido desde os primórdios da minha existência, porque a vó Velha sempre soube ver nos meus olhos o fascínio pela maquineta de corda centenária que me fazia sorrir a cada badalada.

Sempre a conheci velha. Já era velha, a vó Ninita, quando eu nasci. Faria noventa e nove este ano. Desde que me lembro de ser gente, sempre que me dava uma prenda, pelo meu aniversário ou pelo Natal, dizia-me baixinho «aproveita que para o ano já cá não estou». Sempre soube que ela ia morrer. Um dia mudou-se cá para casa, contra a sua vontade. Tornou-se muito resmungona e implicativa. O relógio de corda, que veio com ela, doía-me a cada badalada. Das escassas vezes que o meu tio a vinha visitar, e parece-me imperativo referir que mora não mais que quatrocentos metros daqui, talvez não mais que duas vezes por ano, em Abril, pelo aniversário dela, e pelo Natal, ludibriava-a com presentes caros e ela idolatrava o filho, como se do próprio anjo Gabriel se tratasse. Quanto à minha avó, que cuidava dela, numa estranha transição do papel de filha para o de mãe, era constantemente “a maldita”, “a que-não-lhe-dava-importância”, “a que-iria ser-atormentada”. A vó Velha piorava de dia para dia, e isto parece ter durado anos infinitos. Parece que ainda ouço os “ais” que vinham do andar de cima, longos, ritmados, incessantes. A vó Alice vergava de cansaço e um inconformismo gigantesco nascia dentro de mim. A vó Velha ia morrer, sabia-se.

A notícia acabou por ser inesperada, tal como a minha reacção, tantas vezes ensaiada para não vacilar perante o inevitável. Eu pensei, por instantes, no que sempre me tinham dito, que vaso ruim não quebrava e a vó Velha sempre foi perfeitamente lúcida, fisicamente rija, como uma camponesa. Quebrou e eu não consegui controlar as emoções, não tinha planeado assim. O funeral foi um cortejo de cinismo e arrependimento que vou tentando esquecer.

Sei que compreendo agora a vó Velha. O ódio que sentia, não por alguém em especial, mas pelo simples movimento irreversível do mundo, que ela não conseguia compreender. O amor não correspondido por um filho que a acarinhava senão pela obrigação moral de o fazer. A vontade de voltar ao jardim e colher as folhas do chá, cheirar as rosas, preparar a massa e fazer uma broa, dormir na cama que sempre conheceu como sua. A vó Velha, que só conheceu muito tarde o telefone, o elevador, as sanitas com canalização, a televisão, que ela ouvia tão alto durante todo o dia, que nunca soube o que era um computador ou um telemóvel, até do que pouco ou nada conheceu lhe era custoso pensar em não mais o ver. A impossibilidade de tudo. A capacidade de nada.

62. «Odes e outros poemas»

«Pequena vida consciente, sempre
Da repetida imagem perseguida
Do fim inevitável, a cada hora
Sentindo-se mudada,
E, como Orfeu volvendo à vinda esposa
O olhar algoz, para o passado erguendo
A memória pra em mágoas o apagar
No báratro da mente.»

Ricardo Reis, Odes e outros poemas (nº62)