terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Como Orfeu V


O meu corpo acordou hoje como se estivesse segregando um diluente que me vai queimando a alma já corroída de ontem. Abro os olhos para as pedras do largo, mais polidas agora, mais gastas como nós, reparo na verdura que a humidade fez tufar pelos seus entremeios e vejo, na realidade, o gorgulho que nos foi crescendo por dentro, tatuagem interna que dói à proporção do que se nos vai esgotando. Que é da bicicleta, avó? Que é dela? Estava guardada ali mesmo debaixo das escadas. (Já nem esse espaço existe. Alguém o quis tapar do frio.) Quero de volta a minha bicicleta verde, brilhante, sorriso de um Natal qualquer, orgulho das corridas no velho largo. Era tão moderna, a minha bicicleta. Quero sair voando nela e passar à tua porta. Digo à tua mãe que venho desafiar-te para uma corrida e ouço-a chamar por ti. Vens a correr. Esbaforido. Calções de praia verdes e uma t-shirt desbotada. Não te atrases para o almoço!

Vamos chamar o Manel? Subimos a rua sem pensar em mais nada senão em chamá-lo. Abre a porta e espreita com aquele olhar moreno de quem pergunta. Por detrás adivinha-se uma cabeça russa com uns enormes olhos azul-suplicante. Descemos de novo a rua íngreme, como se nada mais importasse senão o próprio descer da rua, em si mesmo, quatro pares de olhos que queriam fitar só o céu, porque o chão não fazia sentido. Abre os braços, vá! Perde o medo! E num sorriso voltávamos ao largo, e a manhã passava em duas pedaladas, e já estávamos atrasados para o almoço.

Como eu gostava de almoçar na varanda a ver passar quem passasse! Sabia-me melhor a jardineira se estivesse a ver o mundo entre cada garfada. E no momento em que dava a última mordida numa maçã, iam chegando, pouco a pouco, três, cinco, sete… Quantos éramos? Já nem nos sei contar. Perdi-me nas subtracções tortuosas das nossas vidas.

Voltávamos para a rua depois de eu pedir licença. O meu avô sorria, como quem diz que sim. Vê lá, não esfoles os joelhos! dizia a avó. Muitas vezes saíamos a pé, à procura de um qualquer entretém, quando a vida ainda não nos tinha sujado as almas. Partíamos para as quintas e quintais dos vizinhos, trepávamos as árvores para ver quem subia mais alto, enchíamo-nos de nódoas do sumo das laranjas roubadas e o tempo voltava a fugir nos instantes que tem uma boa gargalhada. Logo logo víamos uma sombra, e outra, e outra que gritavam quase em uníssono: Anda jantar! Já a noite se deitava sobre as nossas cabeças e ninguém tinha dado por isso. O brilho dos nossos olhos chegava e pronto. Assim sendo, já que insistiam connosco, lá recolhíamos e fazia-se silêncio. Aquele silêncio que tu quebravas com as pedrinhas atiradas à janela. Shhh! Que é da minha bicicleta? E da tua? Vieste a pé? Perdeste-te noutras corridas, outros viraram o guiador procurando novos rumos, só eu continuo aqui. Que é de ti? Que é de nós? Que é dos mil pares de olhos cor-de-sonho que pedalavam pelo largo empedrado?

DILUENTE


A vizinha do número quatorze ria hoje da porta

De onde há um mês saiu o enterro do filho pequeno.

Ria naturalmente com a alma na cara.

Está certo: é a vida.

A dor não dura porque a dor não dura.

Está certo.

Repito: está certo.

Mas o meu coração não está certo.

O meu coração romântico faz enigmas do egoísmo da vida.

Cá está a lição, ó alma da gente!

Se a mãe esquece o filho que saiu dela e morreu,

Quem se vai dar ao trabalho de se lembrar de mim?

Estou só no mundo, como um peão de cair.

Posso morrer como o orvalho seca.

Por uma arte natural de natureza solar,

Posso morrer à vontade da deslembrança,

Posso morrer como ninguém...

Mas isto dói,

Isto é indecente para quem tem coração...

Isto...

Sim, isto fica-me nas goelas como uma sanduíche com lágrimas...

Gloria? Amor? O anseio de uma alma humana?

Apoteose ás avessas...

Dêem-me Agua de Vidago, que eu quero esquecer a Vida!


Álvaro de Campos

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

Como Orfeu IV


Pareceu-me ter-te ouvido. Julguei ao fundo das escadas a tua voz rouca, intermitência de ontem... Pensei que vinha da varanda de antes o riscar nunca acertado de uma BIC laranja sobre aqueles desafortunados boletins quadriculados.
Ergui, pesada, a cabeça, e estiquei o mais que pude o meu pescoço dorido, mas não havia nada do lado de fora da janela. É só Janeiro a trazer-me a febre de te ver, uma vez mais...

sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

«Ah as horas indecisas em que a minha vida parece de um outro...

As horas do crepúsculo no terraço dos cafés cosmopolitas!

Na hora de olhos húmidos em que se acendem as luzes

E o cansaço sabe vagamente a uma febre passada.»


Álvaro de Campos