terça-feira, 22 de novembro de 2011

De Cronos

Sou avessa ao Tempo.
Consome-nos.
Agarra-nos e leva-nos para longe
da nossa própria vida.
E é por isto que O temo.
Cronos comia os filhos
e do mesmo modo nos devora a juventude,
as amizades, as recordações e os pensamentos,
tudo o que julgamos ter de mais íntimo.
Mastiga-nos
com a saudade de calendas e idos.
Tortura-nos
com agendas e tique-taques.
Rouba-nos o sono e embriaga-nos
de ânsia de descanso.

segunda-feira, 13 de junho de 2011

Pessoas que Pessoa não toca


Tenho diante de mim um jovem estudante. O cabelo escuro, os olhos cerrados sob o peso das grossas sobrancelhas, a sombra de uma barba adivinhada começam a desenhar um rosto de homem. É indubitavelmente mais alto do que eu, embora pareça encolhido quando sentado na cadeira sonolenta. Boceja. Cabeça sustentada na mão que se apoia no cotovelo mole, deslizante sobre a mesa. O cérebro pensante lateja e ainda assim boceja. Falo-lhe de Pessoa e do fingimento poético, conceito que ele parece absorver de imediato. Anuncio com suspense a criação da heteronímia e o entusiasmo que esperava ver materializa-se num sorriso gozão, como quem troça de um qualquer bêbado de porta de taberna. Abrevio a teoria, que se anuncia ao rapaz como um terror de infância tardia, porque um primo lhe disse que era assustador, como o papão que ainda mora debaixo da sua cama. Por vezes, quando leio uma ou outra passagem, mais emotiva ou mais inflamada, a minha voz fica trémula, embargada, e, não querendo que nenhuma sensibilidade da minha parte interfersse com o primeiro grande juízo do estudante, ouvimos a singeleza do ‘gato que brinca na rua’ na voz possante de Villaret - e nem isso lhe provocou um esgar, o mais microscópico tremelique, a menor sensação. Como posso pedir-lhe que aprecie um trecho da ‘Ode Triunfal’? Que moral me foi concedida para que o mande reconhecer a ‘dor de pensar’? Que saberá ele sobre a “raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira”? Ele que terá quê, dezoito anos? O passado ainda não lhe é suficientemente distante para que sinta por ele especial saudade. “Não é da idade,não”, sussurra-me a memória. Na inocência dos meus dezasseis anos apreciava como a uma maçã sumarenta a leitura de Pessoa no jardim. E claro que não o entendia completamente. Ainda hoje seria arrogante da minha parte dizer que o percebo já que nem ele percebia o seu próprio ‘eu’. O que interessava era o gosto com que o fazia e, só aí gosto desenvolvido, teria vontade de querer saber os pormenores rebuscados das teorias que alguém foi inventando para a genialidade de uma pessoa que era tantas. Não és tu tantos, também, tantas vezes? Deixa-o bocejar. Não é isso que me incomoda. Tantas vezes bocejei eu nas aulas de estudos pessoanos, embalada na voz grave do respeitável lente, e sabia-me tão bem. Era um bocejar feito do mais puro deleite e de aborrecimento tinha muito pouco. Aceito que haja pessoas que Pessoa não toca, mas acredito, secretamente, que isso ainda se cura com um cházinho, pelo menos até determinada idade.

domingo, 20 de março de 2011

«José e Pilar» de Miguel Gonçalves Mendes


Fui ver José e Pilar com o desânimo de quem vai ver um filme de Manoel de Oliveira – o filme afigurava-se longo e, como vestia o rótulo de documentário, pré-concebi-o entediante. A sala enorme estava quase nua, mas rapidamente encheu nos primeiros minutos de filme, o que resultou numa desatenção da minha parte perante os créditos iniciais e as imagens introdutórias. Quando pude, finalmente, prestar a devida atenção ao que se passava na tela grande, rapidamente reconheci o erro do meu preconceito: ao contrário daquilo que penso, por norma, sobre quem escreve bem, o discurso de Saramago revelou-se claro e envolvente; a história de amor apregoada não trazia consigo um pingo de lamechice e a figura debilitada de um dos nomes maiores da literatura portuguesa era frequentemente amenizada pelos momentos de bom-humor caseiro de alguém que, mais do que escritor tardio, foi um homem com uma vida de homem, que se apaixonou humana e irremediavelmente e que questionava de modo contínuo, do ponto de vista de uma lucidez despida, o absurdo dos postulados da Igreja Católica, perante os quais a humanidade se vergou desde tempos imemoriais.

É um filme de momentos, de fragmentos que acompanham o processo de escrita d' A Viagem do Elefante, com todos os percalços incluídos, as consequentes e cansativas viagens de apresentação da obra, a dedicação à biblioteca, revelam-nos um Saramago de força e de garra, com uma sede insana de escrever (impondo a si mesmo a “obrigação” de escrever, pelo menos, duas páginas por dia), organizado e metódico, ainda assim surpreendentemente divertido para alguém que se descrevia a si mesmo como carrancudo.

Além da perspectiva de Saramago, é-nos fornecida a feminina, a de Pilar, “o seu pilar”, o incansável reverso da medalha, apreciadora maior do seu trabalho, seu braço direito, suas pernas muitas vezes. Pilar foi, tal como a escrita, na vida de Saramago, um bem tardio, um amor intenso. O homem que não temia a morte, afirmando a inexistência de um “céu” na ironia de um sorriso, queria apenas tempo, para escrever, viajar e amar, por não ter tido oportunidade de o fazer antes. As palavras vão brotando, perfeitas e simples, como ‘a casa’, como os pequenos prazeres, como a insistência em aportuguesar tudo, sinal do eterno amor à pátria, que era a sua língua.

Não há, em momento algum, tentativa de endeusamento do escritor e pensador, nem o aproveitamento do impacto da sua ainda recente morte. É cativante porque simples e perfeito, íntimo e divertido. Poderia prolongar-se por mais um par de horas, que não causaria enfado algum.

"Subi ontem à Montanha Blanca, lembro-me de ter pensado enquanto subia - se caio aqui,me mato, acabou-se, não farei mais livros - não liguei ao aviso a única coisa realmente importante que tinha para fazer naquele momento era chegar lá acima."

quinta-feira, 17 de março de 2011

After Dark - Os Passageiros da Noite


After Dark é o perfeito desenrolar de um novelo de histórias que se sucedem numa só noite. A inquietude e a solidão, a cidade que nunca dorme, a criminalidade, a sociedade japonesa, o crime organizado chinês, as relações sociais e os laços familiares, a música e o cinema, o sono, o sonho. Todos estes temas são abordados de modo ordenado e preciso, sucedendo-se e entrecortando-se, certos como ponteiros de relógio, tratados no momento oportuno da narração, alguns sobejamente desenvolvidos, outros apenas subtilmente sugeridos. Desta feita, Murakami aproxima o leitor da narrativa através de uma interessante adaptação de técnicas cinematográficas à descrição literária, permitindo-nos visualizar o cenário de um modo bem mais ‘real’ e palpável dentro daquilo que é o nosso próprio imaginário. Algumas páginas volvidas e torna-se impossível não reparar nos pequenos relógios desenhados no canto superior direito da página que inicia cada capítulo, indicando-nos a passagem do tempo com precisão.

«Five Points After Dark» como música de fundo. A descrição da paisagem urbana. Mari Asai encontra-se num café, fugida da pressão familiar que a tenra idade não suporta. É lá que se encontra com Takahashi, um músico de jazz que não resiste à tentação de abordar a jovem a propósito da sua bela irmã. É de Eri Asai que fala o músico, encantado, a irmã de Mari que havia anunciado aos pais, dois meses antes, que iria dormir por tempo indeterminado, mantendo-se num sono profundo até à data do relato. Logo depois, é-nos dada a perspectiva do quarto de Eri, todos os pormenores nos são fornecidos com uma extraordinária minúcia, mas é a televisão que subitamente se liga que nos prende a atenção: do lado de lá está o ‘homem sem rosto’, que a observa e vai entrando na realidade daquele quarto, de modo medonho. A nossa atenção volta-se de novo para Mari, cuja noite de evasão é interrompida por um outro percalço, chamada a intervir como tradutora numa situação que envolve um ‘hotel do amor’, propriedade de Kaoru, e uma situação de violência com uma prostituta chinesa. Outra badalada, outro cenário, outra situação: o escritório de Shirakawa, o trabalhador de colarinho branco, empenhado, reprimido, evacuado numa vida dupla. A noite segue o seu rumo e as histórias paralelas alternam-se de modo rigoroso e interessante ao ponto de se desejar mais. Os diálogos fluidos de Mari com o músico ou com a proprietária e empregadas do Hotel Alphaville conferem ritmo à obra quando intercalados com os momentos fortemente descritivos do sono aparentemente imperturbável de Eri e do percurso de Shirakawa. Ao fim da noite, todos os cenários se vão compondo, todas as personagens vão ganhando densidade, todas as histórias se vão enovelando, sem que o fio nunca quebre ou se perca, antes pelo contrário: todo e qualquer pormenor interessa, tudo converge para uma só madrugada.


http://www.youtube.com/watch?v=_BlHRPXPx-4

sábado, 26 de fevereiro de 2011

Filme do Desassossego ou "Primeiro estranha-se"


Quando se ouviu dizer que João Botelho filmava o Desassossego, a questão que coloquei a ninguém foi “Como raio irão concertar uma história coerente a partir de uma imensidão de fragmentos? Como se prende uma audiência a um texto que é, por costume, lido durante o tempo de uma vida, de modo desordenado, conforme as palavras vão agarrando mais ou menos os olhos? Aguardei.

A primeira sessão do filme escapou-se-me numa corrida contra o tempo e a curiosidade ardia por dentro. Finalmente o filme havia regressado a Coimbra. As portas do TAGV estavam encobertas por uma pequena multidão. “Muita gente jovem”, sussurrava uma senhora de avançada idade ao ouvido de quem a acompanhava. Já não me recordo da última vez que assisti a uma sessão de cinema sem intervalo, sem o sacudir das pipocas dentro da caixa de cartão, na escuridão completa. O lugar era dos melhores: a meio da sala, um pouquinho mais acima. Seria perfeito se o indivíduo da frente fosse uns dez centímetros mais baixo, o que me permitiria ver perfeitamente o canto inferior direito da tela.

O burburinho que se fazia ouvir dentro da sala cessou assim que uma luz forte nos feriu os olhos, que já se haviam habituado à cegueira da sala escura. O marulho. A dissertação primeira. Depois, a imagem familiar de um homem franzino, de sobretudo acastanhado e óculos redondos de haste metálica, sentado à mesa do café: era Fernando Pessoa! Numa mesa ao lado, um homem de semblante carregado, aspecto descuidado, idade indefinida, algures entre uma idade adulta sofrida e uma juventude à qual o brilho teria sido roubado pelos tormentos, o mesmo que há em qualquer objecto novo e que se vai perdendo, à força do desgaste. Era Bernardo Soares, a angustiada figura. Um desacato no estabelecimento nocturno, de aparência duvidosa, dá azo a um curto diálogo entre ortónimo e heterónimo, no qual o último refere o seu livro de fragmentos e logo o primeiro se prontifica a oferecer-se para o ler, a fim de estudar as possibilidades de o editar, cenário perante o qual Soares não se mostra especialmente entusiasmado (lembremo-nos de que Pessoa só viu editada uma obra sua, a “Mensagem”, composta por 44 poemas).

As imagens criam o ambiente pessoano propício ao pensamento livre, ramificado, repleto de analepses e prolepses, incompleto e inacabado, perfeito exercício mental. Não nos perdemos na história, apenas ficamos enrodilhados na catadupa de raciocínios que Soares vai cruzando e presos à fonética com que soam: fiéis excertos do Livro do Desassossego, tão perfeitos quanto esperávamos, beliscadores de consciência, encantadores quando ouvidos dizer por Cláudio da Silva, que sabe colocar as palavras e introduzir as pausas nos momentos exactos, juízos e silêncios cristalizados no preciso intervalo temporal que marca a diferença entre o distinto e o vulgar. E não é só o tom, a dicção, o esmero no dizer: Cláudio da Silva não vestiu Soares, fundiu-se com ele, sugou-lhe a intimidade no olhar esgazeado, no sofrimento febril da expressão facial, no modo nervoso de se deslocar, nos movimentos descontrolados das mãos, onde se lê o descontrolo e a perdição dos sentidos. É inebriante o momento em que ele se senta, ansioso, à secretária, e escreve torrencialmente, sem que a mão consiga acompanhar a rapidez do seu pensamento.

Posso entendê-lo como um momento representativo da genialidade pessoana ou, então, como uma tentativa de puxar para o real concreto a matéria demente dos sonhos de Soares em pleno processo de criação, contudo, desagradou-me profundamente a versão de ópera da Marcha Fúnebre para o Rei Luís II da Baviera. Não tiro o mérito a quem musicou o texto, nem a quem interpretou o trecho, tanto que Angélica Neto e Elsa Cortez provaram ter espantosos dons vocais. Desagradou-me como ouvir cantar Camões ou como ouvir declamar excertos de textos de autoria portuguesa com qualquer tipo de sotaque. Não me soa bem, só isso.

Depois de longos momentos passados na troca de conjecturas da tela para nós mesmos e de nós mesmos para o nosso próprio interior, eis a surpreendente resolução do equívoco inicial, que nos acompanhou ao longo de todo o tempo: Pessoa tem consigo o manuscrito do Livro do Desassossego, que nega veementemente ser seu. Bem sabemos que Bernardo Soares, aquele que pessoa conheceu no café e com quem se encontrou noutras ocasiões era, “apenas," um valioso fruto da sua produtiva imaginação.

O que nos fica na memória? A cor local da sociedade portuguesa nos anos 30/40, a aparente e propositada alienação de Pessoa da própria realidade social, a forma como as inquietações e reflexões de Soares saem de si mesmo e se reflectem nas personagens secundárias e nas secundaríssimas (até mesmo em nós, espectadores) que vai, silenciosamente observando. E quando me perguntam como foi, recordo-me dos longos monólogos e das palavras preciosas que mais depressa atingiam os sentidos do que o próprio pensamento, demasiado lento para o ritmo vertiginoso do raciocínio pessoano. Perturbou-me, martelou-me na memória durante uns dias. Desassossegou-me os sentidos. “Primeiro estranha-se…”, respondo eu. Parece ter atingido o objectivo.

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

a minha maneira de estar sozinha

«Não tenho ambições nem desejos

Ser poeta não é ambição minha

É a minha maneira de estar sozinho.»

Fernando Pessoa

Vieram ao meu encontro estes versos, estava eu ainda mergulhada na tarefa de organizar a pesada agenda desta semana. Sempre tive agendas, desde miúda, todos os anos, e lamentava o facto de não ter informação suficiente para que se pudesse considerá-las compostas. Isto para dizer que só há pouco tempo atrás, talvez um ano, talvez nem isso, percebi o verdadeiro valor e funcionalidade de uma agenda. Não é que tenha em grande conta a minha capacidade de memorização, mas nunca pensei que uma agenda se tornasse numa ferramenta essencial do meu quotidiano, muito menos esperava, um dia, depender de um pequeno livrinho preto que me dita o que fazer, exactamente a que horas e em que local, com quem e de que se trata.

«É a minha maneira de estar sozinho.» As palavras ecoavam ao longe, numa outra camada da minha consciência, enquanto que aqui, na vida real, parte do que em mim pensa continuava a fazer contas às escassas horas de uma semana: “terça-feira, das onze ao meio-dia, rimas de Camões, das quinze e trinta às dezasseis e trinta, o texto jornalístico, tempos e modos verbais”.

«Não tenho ambições nem desejos», ia dizendo uma voz, na parte de trás do real. Simultaneamente, no topo da minha cabeça, martelava um som de cálculo, como se um velho barbudo batesse com as pedras de um ábaco, multiplicando por sete os mil quatrocentos e quarenta de que disponho, outra vez por trinta ou trinta e um, às vezes por vinte e nove, subtraindo-lhes, depois, uma quantidade indeterminada de números, imperceptíveis, inenarráveis.

Por momentos, tudo parou: o barulho dos nossos dedos nos teclados, o riscar dos finos bicos das canetas no papel, os gritos dos tenistas na televisão, o ventoinhar do aquecedor que funciona a custo nesta noite gelada. As palavras que ouvia ao longe aproximaram-se e, subitamente, começaram a fazer sentido. Lembrei as caras desconfiadas dos alunos após uma simples questão sobre hábitos de leitura e de escrita. Recordei o espanto de tantos, a incredulidade, o gozo contido perante a realidade de alguém que escreve por gosto, mais do que lhe é pedido, que traz no bolso um par de folhas amarrotadas e uma caneta vulgar para redigir o que quer que lhe apeteça. Veio-me à memória a imagem do teu olhar inquiridor por cima do meu caderninho preto, no qual escrevo todas as noites, antes de me deitar.

Não é para registo futuro nem tem propósito algum. Escrevo sem ambição e porque sim. Posso até estar no meio de uma agitada multidão, mas quando escrevo o mundo é só meu e sou só para mim. Aquilo em que cogito e a matéria e a forma como o faço habitam a minha mente que ninguém vê e, depois, por mais que o diga ou escreva, já não vai ser mais do que a recordação do que antes aconteceu no meu mais interno interior. Às vezes, ao fim do dia, gosto de ter uma folha pautada onde possa, cuidadosamente, fazer um apontamento sobre algo importante ou relatar uma qualquer situação curiosa que tenha, eventualmente, sucedido. Outras vezes há, como desta, em que as ideias surgem, inicialmente com alguma clareza, e vão acabando por sair em catadupa enquanto tento, apenas, expôr algo que me parece simples e que acaba por se tornar numa verdadeira embrulhada filosófica. O que eu quero dizer é que há que usar as palavras, não as deixar enferrujar; e jogar com elas, saber compô-las de modo a exprimir o inexprimível, clarificar o que sempre será dúbio, racionalizar o irracional, é um desafio extraordinário, porque nunca se concretiza na perfeição obrigando-nos, através de vontade interna, inexplicável, salutar, a voltar ao texto uma e outra vez, como forma de saciar o insaciável vício de palavrar a vida.