terça-feira, 25 de agosto de 2015

A Louca Valsa das Sardinhas Amarelas


Eu pego na vida sem trela, corto na viela sem pedir licença,
e entro e faço por dentro, saio de repente e deixo a diferença.
É bela a sardinha amarela que prestes me puxa p'rá frenética dança,

e que coisa maluca é esta de já ser maior e querer ser criança.
Rodopio de umbigo tão frio ao ritmo louco de uma valsa falsa,


e balanço, que danço, tanto rodopio, do vestido bacoco cai uma alça.
Inebria o estilo que não é tranquilo e dou por mim assim descalça,
solto-me então daquilo que é pó antigo e siga a valsa!
Ritmada, como uma batucada, o salero todo e já nem valsa é,

e que importa se a vontade é torta e continua perpetuamente a bater o pé?!

segunda-feira, 24 de agosto de 2015

espasmo-condor


A morte não é coisa terrena e por isso traz pena,
faz chorar e ralhar, desentender e desencontrar
 por não a sabermos tragar.
Um dia há-de apanhar-nos e traçar o que de nós restar.
Ninguém daqui sai melhor do que o outro
e isso é tão noto no crânio, teste espontâneo
da igualdade menor da divina espécie superior
a que tem por rosto o homem destruidor
a que educa cada filho no caminho do traidor
a que trata o próprio irmão com rancor
a que tanto erra e culpa um tal senhor
que inventou para ser eterno pagador
do que é inerente à espécie: um mal interior 
pertenço-lhe e tenho tanto pavor
muito, muito mais do que à ceifeira-mor
que há-de chegar no dia em que for.

domingo, 23 de agosto de 2015

Das rotas de uma sardinha-caravela


Tenho na pele uma sardinha que chora, sem saber o que a espera na hora de ir embora. Traz nas costas dela toda uma caravela, rasgando mares de sargaço, desembaraçando o embaraço, desapertando nós sem perder o laço. Tem nas cruzes invertidas as vontades de mil vidas, e uma fé contrária à da dos 'toda a gente', é assim que lhes faz frente: por ser sardinha só, e ainda assim contente. Das tempestades os raios, os avessos das deidades, que desabrocharão em flor, num chão que hei-de pisar, todo cheio de cor, pintado do que lá plantar.
Tenho nas mãos as putas das chaves, pesadas, robustas, de tantas portas ainda por abrir. Para trás fica meu Olimpo, minha aldeia singular -  que por não ter rio, tem o mais belo dos rios. Faz-me sorrir, Jano, faz-me sorrir!

sexta-feira, 29 de maio de 2015

Sobre tatuagens, ou a propósito do preconceito

work by Angelique Houtkamp from Salon Serpent Tattoo

Há quem goste de fazer peelings, um botox que suba as maçãs do rosto ou um sobrolho já descaído, há quem goste de ser garrido, há quem traje sempre de fúnebre cor. Há os que investem em iates, casas grandes, carteiras de marca, roupas caras, maquilhagem, gigantescas unhas de gel. Há quem use brincos espampanantes, penteados exuberantes, vestidos de cocktail ou sapatos de sola vermelha. Tudo legítimo. Cada um faz o que quer com o que tem.
Qual a diferença entre a aparente normalidade de tudo isto e a berrante anormalidade da tatuagem? Num mundo que apregoa, ou começa a apregoar, o direito à inteira soberania do próprio corpo, o indivíduo tatuado continua a ser encarado de esguelha, olhado de lado, rotulado de marginal ou drogado, louco por aceitar a dor, mais louco ainda pela perenidade de uma escolha. Pior do que isto, o indivíduo tatuado, continua a ser rejeitado em entrevistas de emprego porque os patrões limpinhos não querem apresentar aos seus imaculados clientes uma imagem que parecem considerar suja. É a arte suja? Será a latência de uma ideia de mácula da própria pele vinda de um levítico ponto não sei o quê? Será assim tão rebuscada a ideia de marcar para sempre, em nós mesmos, uma significância nossa?
Compreenda-se que a motivação primeira da aceitação da dor é sustentada por uma forte razão. Note-se, ainda, que o próprio processo doloroso funciona, em si mesmo, como um acto de purga da mesmice diária, como uma homenagem merecida a um ego que é mais do que essa mesmice. São inúmeras as razões que levam alguém a tatuar-se: seja egotrip, uma homenagem familiar, uma manifestação de um gosto, uma temporária imortalização de uma ideia, um conceito, um ídolo, um grito de revolta, um memento apenas. Creiam que, de qualquer das formas, é forte a razão, a vontade inabalável e destemida que leva o verdadeiro amante da tatuagem a esforçar-se por marcar na pele aquilo que o define. E o processo, enquanto purga, ou rito iniciático em busca de um objectivo final, acaba por ser, tanto para o tatuado como para o tatuador, um momento de prazer, de partilha, de encanto, de auto-gnose, de suplantação de limites próprios.
E, no fim, a perenidade. Que confusão provoca isto em todo o tipo de gerações! – não é, portanto, uma questão geracional, a da marginalização da tatuagem. Se para a sociedade moderna, na qual tudo funciona na lógica do usa-e-deita-fora, do troca-por-um-novo, o conceito de ‘para sempre’ pode ser difícil de entender, não é porque as gerações anteriores vêem a tatuagem como um acto de rebeldia, de comportamento marginal, de auto-segregação. Uns assustam-se com o conceito de intemporalidade – a esses digo que ninguém sai daqui vivo, daí a tatuagem ser, como tudo, temporária – outros não estão simplesmente dispostos a ver um pouco mais longe – e com esses pouco me importo. Para quem gosta de tatuagem, importa, sim, o resultado final, a felicidade de ver concretizado um projecto que não é só nosso, mas também fruto da nossa dor e suor, representante apenas de outras dores e suores maiores que se vai vivendo vida fora.
‘Ficava bonito num quadro, ou numa t-shirt’. Estas pessoas ficavam bonitas caladas, respeitando o gosto alheio. Porque eu também posso achar que há caras que ficariam bem num freak show, mas não o digo por respeito. É arte, exponho-a onde quero. ‘Faz cancro da pele, porque os poros não respiram’. Os vossos cérebros respirariam um pouco melhor com mais informação. Procurem-na. ‘Mas não vale a pena’. Mas quem é que decide isso? ‘Mas como é que arranjas trabalho depois?’ Prefiro ser desempregada a trabalhar para um patrão preconceituoso e, mais do que isto, se não houver quem transgrida a norma que alguém inventou, quem a vai quebrar? Não são as tatuagens que nos tiram capacidade de desempenhar o nosso mister com a mesma mestria de quem tem a pele imaculada. Óptimos profissionais são tatuados, embora, infelizmente, tenham que o esconder do olho mau. Sabem quem também merece apreço? Os tatuadores. São artistas de topo, que pintam a pele, que têm o dom de nos ler as angústias e as glórias e saber desenhá-las exactamente como as sentimos, a rasgos dolorosos, como as coisas importantes devem ser. Muita gente hoje recorre à tatuagem, não só para tapar estrias ou outros desconfortos pessoais de menor gravidade, como ‘repõem’ com exactidão mamilos que, por alguma razão, tiveram que deixar de o ser, ou alguma pigmentação que falte a quem sofra de vitiligo ou problemas semelhantes. Há mulheres que tiram o peito e, não querendo repô-lo, orgulhosamente exibem uma tatuagem invariavelmente bonita no peito que lhes falhou.

Respeitemos, pois, tatuadores e tatuados, como se respeitam artistas e público, médicos e pacientes, professores e alunos, clínicas de estética e seus clientes, ginásios e atletas, spas e pessoas relaxadas, cabeleireiros e belas trunfas, gente como nós, diferente como deve ser.  

segunda-feira, 25 de maio de 2015

Das mentiras de Maio


Maio, sabes como te olho de soslaio, sempre que vens de mansinho, cheio de flores e carinho, teus ricos odores e tantas, tantas cores! Trazes o calor que me sufoca, és a mão que me tapa a boca e o cordel que já fez de mim marioneta. Escondes-te por detrás da áurea aliança de Perséfone e Deméter, mas, por mais que as ocultes, são sempre amargas tuas lembranças, carregadinhas de fedor a éter. Como os deuses, mês de Maria - falso como a mulher que paria, sendo ainda mais casta que qualquer Primavera! Pudera! - tanto dás como tiras, floresces em esplendor, mas ceifas sempre esta ou aquela flor, das minhas, das que são as mais belas para mim -  chegas pomposo, em bouquet, mas detróis meu suado e precioso jardim!  E de olorífera má intenção, provocas-me tamanha constipação, que me pões a espirrar assim! Ai, mal de mim, falso mês! Que venha o estio de vez, que esse ao menos traz a verdade da sofrida temperatura, que ou me fecha em fresca clausura, ou me leva para junto da mais pura brisa de mar.

sexta-feira, 8 de maio de 2015

Diálogo do Silêncio



Ah, Coimbra, é tão difícil morar-te! A cada Maio nos trazes uma negritude que pesa mais do que a saudade, que de ano para ano piora, que de Queima a Queima sufoca. Deixas queimar as ruas de estrondo e devassa, e a cada estudante que passa, já nele não vejo a estudante que fui. São quase as mesmas capas, as desconfortáveis chanatas, o mesmo fétido traje posto a um canto a cada manhã. Ah, mas aquele espanto, a vontade, o querer, o tal espírito de que se fala , o saber para onde se vai, o sentir da balada, o amor com que se sai, encafuado na veste que badala, tolhido o andar do pé que dói, empurrado pelo sorriso amigo, abraçando tudo o que já foi - disto já não há!

Vendeu-se o fado, Hilário, não é mais teu, é do Estado. É pertença de armário de comissão, do comissário ladrão, que reduz concertos a cantigas de jajão, que esmoifa notas em jantares de reunião. Ai, Hilário! Se o saber se vende, se se vende tanta cerveja, porque se não há-de vender, pois, a festa? Que levem a sua essência também, a custo zero, mas não a cidade que reclamam! Não, obstinados, de fatiota ajanotados, manada de joelhos arrastados no porco chão do vosso vazio. Tenham brio! Respeito pela alma mater que vos acolhe, pelo rio que vos alimenta a vista, pela gente que é de cá e vos recebe. Um respeito que está acima de qualquer dux, de qualquer praxe, do doutor que vos escolhe ou do que melhor vos engraxe, do que vos manda o cenho baixar, noite fora - só a cabra tem o direito de vos dizer 'agora'! Só vós tendes o poder de dizer 'chega!', usando essa capa briosa de consciência acesa.

Ah, Lusa Atenas, que amas os teus filhos por igual, quem é de fora e quem é de cá, os que te fazem bem e os que te querem mal, gente boa e gente má, deste esquema piramidal que deixas crescer, por qualquer razão que meu coração desconhece. Sacode a peneirice, mulher primeira, és a pura mae guerreira, ventre dos que se não calaram! Traz teus filhos de volta à essência, que urge tanto e há pertinência de pureza. Sê, de novo, uma lição!  

sexta-feira, 20 de março de 2015

Cabeça de Medusa


A cada passo que piso, sem siso, é espaço obscuro, cabeça de Medusa, apertos de mãos sujas e tantos nojos de nadas. São as pilecas, as pelicas, os salamaleques e os truques, as saladas e as tricas. Altas patentes periclitantes, promessas de saco-roto, vontades de querer frouxo, animosidade de espírito coxo, antiguidade a cheirar a mofo, autoridade de mau gosto. O respeito, o despeito, a dignidade, o deboche, a postura e o que é importante, o que é impotente e o que desmente, o demente e o fantoche. A fatiota deprimente, o mau âmago, claramente, e o sorriso que é postiço, dente a dente. E a gente? Que vai ser da gente?

São tachos de machos frouxos e cambalachos de apropriadores do que é do outro. São truques, traques, rebites e remates, negócios mal-amanhados, futuros somente apalavrados, facilmente abafados, sem esforço apagados, ordenados forçados para filhos e enteados. E enquanto segue o corsel dos loucos, no cortejo dos parcos, os artistas de circo, já fartos, vão abandonando pelos cantos, as bicicletas obsoletas, que são parcas já suas piruetas para competir com piratas agiotas.

E ainda há os que lambem as botas, de língua comprida, afiada no espreitar de portas, no bufar de segredos, no saber usar os medos, na aplicação dos métodos retóricos certos, enquanto os outros rangem os dentes, suados de esperanças mentirosas, de pele rasgada pelos espinhos das vossas rosas, de cara fechada pelos amargos das vossas prosas. Trilhamos caminhos doentes, de olhos tão dormentes, das imagens da televisão, dos ataques no Irão, dos massacres que por aí vão, das mulheres que sofrem e sofrerão. E deixamos seguir o pagode, enquanto o gajo cofia o bigode, contando os milhões na conta, enquanto nós, cá em baixo, contamos moedas, espreitando para o continente que mal as porta, de parcas e poucas, de fracas e raras.

E quem nos acode? Quem nos acode? Se somos apáticos e patéticos, conformados e já esqueléticos, de sermos roubados sem cerimónia, de nos sorverem a substância e o ânimo, de nos sugarem a infância em anónimo. Somos autómatos desanimados, de ignorância revestidos, a displicência habituados, de estupidez formatados, de enchimento humano desprovidos, de sentimento de liberdade afastados, de vontade de mudança adormecidos, de visão clara tão gamados, Cegos, tão cegos, já.

E os das casacas viradas, amigos de nada, que não da moeda, não dão a face e riem, do cimo da escada, sem medo da queda. Enquanto houver quem os segure, de mão estendida, vazia de tudo, e os ampare com olho gordo em agradecimento chorudo, e os tenha sempre em mimo, com algum objectivo obscuro, não há quem s tire dali. Enquanto houver uma só escada, imunda e estragada, para mil mãos dispostas a tudo, enquanto se facilita a passagem à linhagem que quer um povo mudo, não há quem os tire dali. Enquanto se acalentarem ideias do tempo da velha senhora, e se fizerem coisas feias com a capa de tradição d'outrora, enquanto os sapatos abstractos, que engraxas sem vergonhas, te apeçonham as mãos, quietas no chão, de imobilidade medonha, ninguém de lá os tira!E nunca é demais nunca chega, nem adulação nem entrega, sem noção nem regra, despida de respeito próprio, apropriada do sujeito ignóbil, fecundação de fruto estéril.

Nós, os insurrectos, alienados inquietos, insubmissos sem complexos, queremos, antes de tudo, o fim dos salamaleques! Postos de parte pelos certos, portas fechadas pela certa, mortos de fome de poeta, temos na guelra o sangue da guerra, e somos a semente nova da terra, o umbigo da revolução. Não te queremos adular, não te estendemos a mão! Queremos valer pelo que somos, trilhar o caminho que escolhemos, fazer aquilo de que gostamos, dispostos a lutar pelo que queremos. Depois de nos secarem por dentro, ao brincar ao monopólio com o nosso talento, depois de nos usarem para vosso próprio sustento, entregando-nos à miséria e ao susto tanto, à baixa inveja de um novo banco, à decadência da prisão à banca, à insolvência da nossa identidade, ao rebaixamento dos padrões de qualidade, ao vil excremento da sociedade, ao desalento de toda uma idade. Exigimos, acima de tudo, respeito! Do fundo do peito, que se fine o compadrio, que morra de vez o tacho amigo, que corra daqui o facilitismo, que se acabe a eito com a ganância, que se tire o jeito à intolerância, que se volte à velha substância. Que nós temos vida e sonhos tantos, direito a eles e aos restantes, às princesas e aos infantes, ao que quisermos, nunca como dantes!