terça-feira, 24 de março de 2009

40.

«Sinto-me às vezes tocado, não sei porquê, de um prenúncio de morte... Ou seja, uma vaga doença, que se não materializa em dor e por isso tende a materializar-se em fim, ou seja, um cansaço que quer um sono tão profundo que o dormir lhe não basta - certo é que sinto como se, no fim de o piorar de um doente, por fim largasse sem violência ou saudade as mãos débeis de sobre a colcha sentida.

Considero então que coisa é esta a que chamamos morte. Não quero dizer o mistério da morte, que não penetro, mas a sensação física de cessar de viver. A humanidade tem medo da morte, mas incertamente; o homem normal bate-se bem em exercício, o homem normal, doente ou velho, raras vezes olha com horror o abismo do nada que ele atribui a esse abismo. Tudo isso é falta de imaginação. Nem há nada menos de quem pensa que supor a morte um sono. Porque o há-de ser se a morte se não assemelha ao sono? O essencial do sono é acordar-se dele, e da morte, supomos, não se acorda. E se a morte se assemelha ao sono, deveremos ter a noção de que se acorda dela. Não é isso, porém, o que o homem normal se figura: figura para si a morte de um sono de que não se acorda, o que nada quer dizer. A morte, disse, não se assemelha ao sono, pois no sono se está vivo e dormindo; nem sei como pode alguém assemelhar a morte a qualquer coisa, pois não pode ter experiência dela, ou coisa com que a comparar.»


A mim, quando vejo um morto, a morte parece-me uma partida. O cadáver dá-me a impressão de um trajo que se deixou. Alguém se foi embora e não precisou de levar aquele fato único que vestira.»

Bernardo Soares,
Livro do Desassossego (fragmento 40)

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