sexta-feira, 10 de outubro de 2014

Inquietação a Giz




Qual é - se é que o há - o sentido que faz
seguir este caminho que conduz
àquilo que para mim é ser feliz,
se o fim do mês é sempre atroz
e a pobre algibeira, sagaz,
esmorece em tão oca matiz?
Queria tanto saber de uma foz,
e eu procuro!, mas o tempo é fugaz!
e de novo nada o tempo me traz
e de novo nada o tempo me diz.
Ah quem me dera ouvir uma voz
que trouxesse só aquela paz
de não ter o futuro por um triz.

domingo, 20 de julho de 2014

Ninguém gosta do Homero!

(Cleopatra, J.W.Waterhouse, 1888)


Estudai contemporâneos apenas
E colocai-os, fechadinhos, em provetas
Prestes chegareis a Atenas
Em conclusões e medidas rectas.
Esquecei p'ra sempre Homero,
Safo, Virgílio, os grandes poetas,
Deixai arder esta vossa Roma
E as vossas provas concretas.
Não há regra e esquadro que meçam
Hexâmetro algum! De pé dáctilo ou espondeu.
A sublime imensurabilidade
Daquilo que meio mundo nunca entendeu!
Não serve já a arte amatória
Aos pubescentes de discoteca
Nem retórica ou oratória
Vão além-portas desses botecos.
Resta-vos o vinho e o olvido
Que até a promiscuidade é já mudada.
Sussurra-nos a 'modernidade' ao ouvido
Que os tempos de antanho já não são nada.
Comeis as palavras que vos trouxe Eneias,
Encheis a boca de carpe diem,
Para cuspir depois em gamelas tão cheias
De científico-pedantismo!
Um dia ireis contemplar vossos umbigos
e saber por vós o que vos vêm dizendo
Que sabiam já os antigos
Tudo o que julgais ir aprendendo.


quarta-feira, 25 de junho de 2014

A uma amazona asténica



Sob o jugo do cinto
sabes tu o que sentes
não sou eu quem está presente
nem te sei diariamente
mas conheço d'outro tempo
um querer tão grande
outro alento
que me espanto e reinvento
conceitos ante esse tormento
de quem sofre só p'ra dentro
arrastando pesada carcaça
cansando-se para matar a traça
de um amor tão doente.
Mas tu és vida, és gente,
mais gente que esse demente.
Gigante! Maior que essa gente!
Rói as cordas, faz-lhes frente!
És mulher independente,
senhora de nariz empinado:
torce o pescoço da serpente,
faz girar esse quadrado!

sábado, 24 de maio de 2014

Capicua por mote



Provo do vinho velho como da tristeza,
porque a chegar aos trinta ganha-se a aspereza
de amar quem nos despreza
de cuidar de tesouros pelos quais já ninguém se interessa
de prezar preciosismos que já ninguém pesa.
E enfureço, viro fera, quando me sinto assim presa,
quando por afecto tenho frieza
quando tenho tecto e mesa
mas almejo bem mais quando no meu peito pesa
uma vontade imensa de ser sabida,
sobretudo p'ra saber desprezar quem me despreza.
Viver na eterna surpresa
suprir o medo e ir além
daquilo que o sustento não sustenta
e ser, sobretudo, dona de mim mesma
é esta a minha cisma
olhar sempre p'ra cima
e reconhecer-me no alto: senhora sem salto,
dona de porte directo
que não faz o que é suposto só porque é correcto
que o coração continua a ser rei
nesta terra de tique-taques comedores
e atentai, senhores,
como o tenho exposto, aberto
ainda que o amor seja incerto,
ainda que o futuro encoberto não saiba
ainda o que me dar
sem salto melhor sei caminhar
não quero ser Orfeu no trilho a trilhar
mas é o que está para trás que me faz andar
em frente é a direcção
não saiba, embora, onde vou chegar
Procuro a verdade:
a minha, a tua,
a de ser isto, a do mundo ser assim
e irei por aqui
até a encontrar.

quarta-feira, 21 de maio de 2014

Da cegueira de Penteu


[dizias que] não sabias
o que fazias
enquanto partias
meus tesouros
minhas porcelanas raras
minhas louças tão caras
e tu só encaras
aquilo que te trazem
à vista seca
porque por detrás das cortinas
onde estão verdades
tu não fazes
mais que assustar meninas
falar coisas mesquinhas
preparar tuas mezinhas
esquematizar atrocidades.
Vês, como uma besta,
cacos sem valor,
quando ali pus, animal,
tanto, mas tanto suor.
quando os coleccionei uma vida
por amor,
quando os ergui ao alto
com fervor.
Cego!
Não vês os pormenores
em cores e flores que ali pus,
que são faunos, centauros,
negros cavalos alados,
sátiros e Ménades
e todo o thíasos
e as mulheres de Roma,
Ísis cheia de mistérios,
os meus sonhos
e uma fénix.
Tirésias, és Penteu cego!
E grande
tão grande
é o teu ego
que precocemente
te cega.
Acabarás por ver
quando
não queres saber
nem
dar conta de nada
de mim brotar
Agave alucinada!
Que a ti,
vê já metamorfoseado,
porque tomado
por eles e mudado,
mudo, calado,
em fera transformado.
Penteu, já o não és!

sexta-feira, 16 de maio de 2014

Dos desentendimentos com os deuses

Caravaggio, 'Abraão e Isaac'

«A história dos homens é a história dos seus desentendimentos com deus,
 nem ele nos entende a nós, nem nós o entendemos a ele.» 
José Saramago,
 Caim (2009, p. 91)

     Desentendemo-nos com os deuses porque eles não nos compreendem nem fazem por nos compreender. Por eles somos marionetados e não nos é permitido questionar. E, contudo, não sabem, sequer, quem somos, Não querem saber do que trazemos por dentro. Dos nossos desejos mais íntimos - responsabilidade só nossa! - não querem ter ideia, porque completos são e nada lhes falta. Querem ver-nos cá em baixo, ovelhados, e passam os dias olhando apenas para cima, em querelas internas do próprio Olimpo, preocupações de panteão que nos não dizem respeito! Querem-nos sem ensejos e condenarão o primeiro que ousar pensar em olhar para o alto. Não nos é dado nem pensar nem saber o que se passa em cimeiros degraus. Que fitemos o chão com os nossos olhos, curvando a nuca; depois, as costas e, por fim, os joelhos, de cansaço. 
     Nosso olhar, como nosso pensar, não têm grilhões ainda e correm e revelam-se sem pudor, porque aqui não é o éden nem o sopé do sinai. Não estamos cegos; e como ainda não nos emudecesteis a todos, falaremos. Olharemos para onde quisermos: para os lados, onde a merda corre, e, depois, para cima, perguntando-vos porquê. Não gostam de ser interpelados! Não temamos! Afinal, quanto tempo nos foi concedido para cá estar e o que queremos realmente fazer dele? Não temos, de qualquer forma, escrita já a sentença? Alerta, sempre alerta. Questionando, nunca deixando de questionar.

terça-feira, 29 de abril de 2014

Caminhar, caminhar...


Vejo a clausura iminente
na forma de um quadrado
e eu não posso ficar
nem deste, nem desse lado.

Vejo o chão, imundo, minguar:
antes vasto terreno sagrado.
E os meus pés a medrar, a medrar
no velho sapato fivelado.

Olho estas mãos a escrevinhar
em ritmo já cansado.
Quem dera vê-las parar
não tivesse eu já começado!

E se um dia quis encetar
este caminho acidentado
não faz sentido travar
o ritmo que tenho engatado
e não faz sentido ficar
parado, assim tão parado
se isto começou com amar
o sonho que hei sonhado
pois continuarei neste andar
nem que o passo seja quebrado
nem que a ferida seja profunda
e a fractura tão exposta!
Caminharei, caminharei:
é somente esta minha resposta.



domingo, 27 de abril de 2014

De um mestre ensandecido



Meus sonhos.
Minhas lívidas porcelanas,
precíosíssimas, pesadíssimas,
que a custo tenho trazido comigo.
Ai de mim!
Mas quebrou o mestre ensandecido!
Desajeitado, aos tropeções,
cego por qualquer maleita,
tomado por delírio que desconheço:
entrou por meu quarto
de relíquias adentro
e mas quebrou.
Que faço agora, mestre,
com estes cacos,
se nem as mãos estendes
para os apanhar?

sexta-feira, 25 de abril de 2014

Dos cravos que desbotam


País de amanhãs medonhos
onde guardas os sonhos
que soías ter?
E egrégia força de luta
que te ensinaram- tristonhos-
teus avós, com mister?

Deixaste murchar os cravos
esquecidos em jarros
sem água
a morrer.
É urgente replantá-los
com as mãos que um dia 
recuperarão poder.

Sai prestes desse marasmo
que eu desespero e pasmo
com esta falta de querer.
Comamos nós quem nos come
mitiguemos a fome
mordendo quem nos quer comer.

quarta-feira, 16 de abril de 2014

Da pequenez


Nós, pobres de nós, cá em baixo.
E os deuses, no Olimpo,
fazendo e desfazendo fados
consoante seus divinos quereres e disposições,
seus áureos amores e desamores,
seus preciosíssimos apegos e ódios.

E nós, pobres de nós, cá em baixo,
sem saber comos nem porquês
das divinas decisões
acatamos.
Porque é assim
que as grandes causas funcionam.

Não é dado aos da terra a conhecer
o grande segredo,
mas sabem estes, de antemão, a quem pertence.
E de que nos serve a nós, 
pobres de nós, pobre pequenez,
uma pequena e pobre revolta
se ante a divindade o homem é tão
só pequeno. 

domingo, 23 de março de 2014

Alucinação primaveril ou das febres nocturnas



Chegara em força, a Primavera, e eu não a queria já. Gosto que venha de passada lenta, mostrando-se aqui, surgindo ali, entrevendo-se além e, aos poucos, que se mostre, pois então no seu esplendor. Eram estas as cogitações que ondulavam dentro de mim, de um corpo mal habituado ao calor, temente ao poder de Apolo, amigo de uma brisa amena e nada menos fresco do que isso. 

Ora sucedeu que, dias depois do encontro primeiro, prazenteiro e animado entre Deméter e Perséfone, Morfeu me pegou na mão e me levou ao lado de lá da realidade, a um mundo paralelo, muito, muito mais belo, onde os desejos são quase-ordens, mas onde os monstros têm proporções imensas. A cada visita ao outro lado do mundo, a Fortuna é quem nos carrega nas mãos e dita, qual Quixote, se são moinhos, se são gigantes, aquilo que o sono nos reserva para purificação da mente. Desta feita, neste sono, as rodas da Fortuna giraram a meu favor e Morfeu levou-me para onde nevava. 

Não estávamos em local distante nem estranho - era a porta de minha casa, o regaço da minha alma! Como nunca, nevava de mansinho e o jardim, as flores de Páscoa, a velha cameleira, o portão verde, tudo tomava para si a cor nívea dos flocos molhados e grande. E eram tão nítidos os flocos, as suas formas perfeitas, as tonalidades azuladas que mostravam ao cair, de encontro ao chão, trilhando estradas de céu sem rumo certo. E caíam, suaves, sem barulho nem noção de que caíam assim, tão devagar, tão belos, formando uma camada de nuvem sob o céu azuladão.

Quis sair, experimentar a alva benesse que, aqui, é fenómeno meteorológico. E não a queria, à neve, só para mim! Chamei-os, para que viessem ver o espectáculo que estava do outro lado da janela. Chamei-os uma vez mais para que corrêssemos para a rua, para que puséssemos os nossos pés na bárbara substância, para que as nossas mãos pudessem saber que toque tinha! Lembro-me de olhar para cima e aproveitar a visão de cada floco cadente, contra o azulão do grande tecto do mundo. Rodopiei, imitando aquela valsa leve e calada, deixando-me cair, também, entre os outros farrapos - talvez querendo, também, saber o que era ser neve.

Acompanhou-me, de novo, Morfeu, ao lado de cá. Deixou-me numa manhã solarenga e distante do níveo momento de onde acabáramos de chegar. Tudo ficou mais fresco e a Primavera começou a saber a groselha gelada.


De um quase-pesadelo

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Fugíamos, os três - éramos,pelo menos, três - por entre os escombros de casas, de escolas, de supermercados. Tudo estava vazio, pilhado, destruído ao nível de um cenário bélico. De que fugíamos nós, não sei bem: julgo que se tratava de um mal imenso que teria vindo ao Mundo para arrasar com a existência humana. Ou, pelo menos, a nossa realidade, o grande Mal tinha vindo para arrasar apenas a nossa pequena realidade, agora caótica.

Num momento seguinte, a porta de casa. E a casa intacta. Na esperança do abrigo, um outro perigo, ou um diferente cambiante do grande Mal, se punha perante nós, já exaustos. Eis que, de repente, sem saber de onde nem como, surgem três, sete, doze animais medonhos. Poderia descrevê-los como javalis alados, ou como cães raivosos com asas de morcego, mas não eram nada disso, ou antes, eram tudo isso numa morfologia exótica e de assustadoras proporções. Tentávamos desesperadamente entrar em casa enquanto enxotávamos aquelas grande gárgulas que, ou se mostravam interessadas em tragar os felinos da casa, com uma atitude horrendamente voraz, ora se penduravam no tecto, quais morcegos, ficando de focinho ao nível das nossas cabeças. E era com paus e traves que lhes batíamos e os enxotávamos, sem grande sucesso. Qual Hidra de inúmeras cabeças, apareciam as criaturas malignas com uma cadência directamente proporcional àquela com que eram eliminadas. E não paravam de chegar, e o desespero era grande, e a esperança já parca.
Após grande hiato, durante o qual poderá ter acontecido o inimaginável, eis que a nossa realidade pós-apocalíptica parecia livre de ameaças, ainda que tudo o que a vista alcançasse parecesse pouco mais do que ruína e miséria. Nisto, há uma velhota rechoncuda que, deitada em cima de uma velha bicicleta, exercita as pernas levantando dois leves pneus. «Vês?!», diz-me uma voz.


segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Do atrevimento de um soneto sobre alteridade interna




Suprema beleza e negro terror
de ser eu, sempr’eu e nunca outr’alguém.
O grande segredo é este temor
e o nunca voltar pr’a ser mais ninguém.

Uma vez só, sem poder ser melhor.
Encarar o espelho e não ser outrem,
que o ego é pai do saber do horror
sempre que os pingos dessa gnose pinguem.

Da passada larga que raro é certa
se cria o caminho da unidade
daquilo que é dentro do que nós somos.

Podermos nós dividir-nos em gomos,
atalhar caminhos de alteridade
no âmago que é sempre porta aberta.

sexta-feira, 17 de janeiro de 2014


As três janelas grandes, meu desafio matinal. Içava-lhes as persianas como pesadas velas, zelosa timoneira de um navio feito de livros. E se não era o sol, eram a torre e a velha cabra quem enchiam de luz a nau do conhecimento. Iluminavam-se as longas mesas de madeira, acervo de cílios tantos, e as cadeiras pesadas e desconfortáveis dos ‘filhos da pauta’. Refulgiam em esplendor todas as estantes em redor, reforço positivo de todas as quatro paredes, do chão até lá acima, às prateleiras do Olimpo! Abriam-se em luz as lombadas douradas, de Álcman a Virgílio, de Apício a Teócrito, de Cícero a Safo, de Aristófanes a Plauto, de Marcial a Plutarco, de Apuleio a Petrónio.Alvoradas de sossego, capas negras de sono! Após o almoço, a lufa-lufa dos estudantes ávidos de literatura - alguns de avidez forçada, é certo, mas muitos de clássica faísca no olhar. Fins de tarde plácidos, poemas a cada despedida do Mondego visto tão de cima!

Mas eram tantas as chaves, e tantas as portas, corredores e gabinetes, depósitos de livros-tesouro e a experiência da revisitação de tudo no trilho encetado do saber. E eram tantas as perguntas, e tantas as requisições, e os papéis e os cartões - ‘Faça o favor de descer à biblioteca do segundo piso para magnetizar o cartão!’. E eram os lentes que conhecia de antes, que admirava de sempre, de uma antiguidade que não é toda minha, mas sei-os. Sei-lhes a delicadeza e o tacto, sei-lhes o querer e a procura. Conheço-lhes, sobretudo, o bom humor, a piada real e sentida, o riso genuíno e aberto. Mas eram tantas as cartas e tanta a noção de responsabilidade e maior o medo de falhar, de não chegar. Mas foi tanto o amor que pus em cada toque de lombada, no selar de cada carta, no girar de cada chave. E a magia da comunicação feita diário-de-bordo, trabalho conjunto de companheiros esforçados! E o convívio que faz viver as línguas dos antigos! E o meu amor junto com o amor deles! Dedicações ao alto, rumando na mesma direcção.


Como me despeço agora de tudo isto? Quero cada livro, cada amigo, cada elástico que arrumei, com cuidado, na caixinha da gaveta. Quero a saudação da cabra e o Mondego fresco e as queijadas de Pereira a cada manhã! Não perco nada porque levo tudo isto dentro de mim. Porque sei agora a dor do percurso iniciático que não torna, como não torna Cronos, atrás. Porque também disto tirei aquilo que agora sou. Porque o galeão estará sempre ali, para me receber, assim dure eu, aprendiz, e o capitão, meu mestre, pedagogo que me tem trazido, pela mão, até aqui.