segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

a minha maneira de estar sozinha

«Não tenho ambições nem desejos

Ser poeta não é ambição minha

É a minha maneira de estar sozinho.»

Fernando Pessoa

Vieram ao meu encontro estes versos, estava eu ainda mergulhada na tarefa de organizar a pesada agenda desta semana. Sempre tive agendas, desde miúda, todos os anos, e lamentava o facto de não ter informação suficiente para que se pudesse considerá-las compostas. Isto para dizer que só há pouco tempo atrás, talvez um ano, talvez nem isso, percebi o verdadeiro valor e funcionalidade de uma agenda. Não é que tenha em grande conta a minha capacidade de memorização, mas nunca pensei que uma agenda se tornasse numa ferramenta essencial do meu quotidiano, muito menos esperava, um dia, depender de um pequeno livrinho preto que me dita o que fazer, exactamente a que horas e em que local, com quem e de que se trata.

«É a minha maneira de estar sozinho.» As palavras ecoavam ao longe, numa outra camada da minha consciência, enquanto que aqui, na vida real, parte do que em mim pensa continuava a fazer contas às escassas horas de uma semana: “terça-feira, das onze ao meio-dia, rimas de Camões, das quinze e trinta às dezasseis e trinta, o texto jornalístico, tempos e modos verbais”.

«Não tenho ambições nem desejos», ia dizendo uma voz, na parte de trás do real. Simultaneamente, no topo da minha cabeça, martelava um som de cálculo, como se um velho barbudo batesse com as pedras de um ábaco, multiplicando por sete os mil quatrocentos e quarenta de que disponho, outra vez por trinta ou trinta e um, às vezes por vinte e nove, subtraindo-lhes, depois, uma quantidade indeterminada de números, imperceptíveis, inenarráveis.

Por momentos, tudo parou: o barulho dos nossos dedos nos teclados, o riscar dos finos bicos das canetas no papel, os gritos dos tenistas na televisão, o ventoinhar do aquecedor que funciona a custo nesta noite gelada. As palavras que ouvia ao longe aproximaram-se e, subitamente, começaram a fazer sentido. Lembrei as caras desconfiadas dos alunos após uma simples questão sobre hábitos de leitura e de escrita. Recordei o espanto de tantos, a incredulidade, o gozo contido perante a realidade de alguém que escreve por gosto, mais do que lhe é pedido, que traz no bolso um par de folhas amarrotadas e uma caneta vulgar para redigir o que quer que lhe apeteça. Veio-me à memória a imagem do teu olhar inquiridor por cima do meu caderninho preto, no qual escrevo todas as noites, antes de me deitar.

Não é para registo futuro nem tem propósito algum. Escrevo sem ambição e porque sim. Posso até estar no meio de uma agitada multidão, mas quando escrevo o mundo é só meu e sou só para mim. Aquilo em que cogito e a matéria e a forma como o faço habitam a minha mente que ninguém vê e, depois, por mais que o diga ou escreva, já não vai ser mais do que a recordação do que antes aconteceu no meu mais interno interior. Às vezes, ao fim do dia, gosto de ter uma folha pautada onde possa, cuidadosamente, fazer um apontamento sobre algo importante ou relatar uma qualquer situação curiosa que tenha, eventualmente, sucedido. Outras vezes há, como desta, em que as ideias surgem, inicialmente com alguma clareza, e vão acabando por sair em catadupa enquanto tento, apenas, expôr algo que me parece simples e que acaba por se tornar numa verdadeira embrulhada filosófica. O que eu quero dizer é que há que usar as palavras, não as deixar enferrujar; e jogar com elas, saber compô-las de modo a exprimir o inexprimível, clarificar o que sempre será dúbio, racionalizar o irracional, é um desafio extraordinário, porque nunca se concretiza na perfeição obrigando-nos, através de vontade interna, inexplicável, salutar, a voltar ao texto uma e outra vez, como forma de saciar o insaciável vício de palavrar a vida.