Aprende-se, estudando linguística, que o falante tem liberdade para se apropriar do léxico para criar os seus próprios enunciados e que é ele o único responsável por manter a língua como organismo vivo, em constante mutação. Só não se aprende, porque ainda ninguém conseguiu descobrir, quais são e como funcionam os mecanismos mentais activados pelo sujeito para uma proeza tão banal: falar, escrever, pôr em palavras o mundo extra-linguístico, o suposto palpável que nos rodeia.
Bernardo Soares deixou-nos o palpite. Guiemo-nos por ele durante breves instantes. Pensemos, por exemplo, na palavra “água”. Em qualquer língua que seja, toda a gente lhe conhece o significado, a definição canónica, as suas principais características e utilizações possíveis. O cérebro de cada um tem, com certeza, incontáveis informações acerca da água, mas o saber que dela universalmente partilhamos é claramente geral, assustadoramente oco. Além da definição de água que é partilhada, cada indivíduo a descreve ou pensa no seu conceito sem nunca se desligar da sua própria relação com a própria água, do prazer que é só seu de tomar um banho quente, da sofreguidão com que a bebe quando tem sede e de como fica saciado. Todos o fazem, mas cada um se apercebe do mesmo à sua própria maneira.
Os japoneses, por exemplo, têm duas palavras para “mãe”. Fazem uma distinção muito clara quando se referem à mãe de outrem e à sua própria mãe. Não terá isto toda a lógica do mundo? Se todos sabemos o que é uma “mãe”, mas se todos pensamos na nossa própria mãe como diferente de todas as outras, não deverá ela ser mais do que o vago conceito do ser que nos trouxe ao mundo? A “mãe”, como todos a imaginamos, é aquela que nos acarinha e trata de nós, que cozinha e arruma a casa, que nos beija a testa e nos vai carregando pela vida, que é mulher corajosa e “pau-para-toda-a-obra”. Mesmo assim, esta “mãe convencional”, ou “mãe desejável”, é sempre diferente da nossa, porque a mão que nos acarinha não é a mesma, porque o seu cheiro é especial, porque a boca com que nos beija é só dela e aquele beijo é exclusivamente nosso.
Esta manhã olhei pela janela e o céu estava azul e o sol já brilhava como deve em tempo de Primavera. Mas os outros já o sabiam. Reparei, mais uma vez, em como o pinhal voltou a verdejar em tão pouco tempo. Tantos outros repararam no mesmo. As grandes pintas amarelas, ao longe, no limoeiro da vizinha, chamaram-me a atenção e olhei para elas demoradamente. Outros já o fizeram. Deixei cair os olhos nas folhas escuras da cameleira, nas hortênsias que despontam, nas violetas que vão murchando, na gata malhada que passa e me olha, sorrateiramente. Nada que outros não tenham visto já. Tudo acaba por parecer banal, mas a questão é que eu não falo nem escrevo português. Eu, tal como todo o pensante-falante-que-também-escreve, mordo a linguagem e faço com que se entranhe em mim e seja parte do que sou.
Não pretendo, de forma alguma, tornar isto que escrevo numa enfadonha recensão sobre a apropriação do sistema linguístico por parte do falante. Quero só estar certa de que cada palavra tem em si uma explosão de individualidade. Escrevo na língua com que penso, que foi a que inventei para realizar em palavras mentais ou impressas aquilo que percepciono do Mundo, perante o qual sempre me espanto, ao qual vou adaptando a língua que há. O céu, pinto-o eu com o meu azul-de-céu e o sol tem a forma e o brilho que só eu lhe sei. O pinhal tem o meu próprio verde-luz que nasce ante os meus olhos. Conheço os limões de amarelo-ácido que apenas vejo no quintal da vizinha melhor do que ela. E as folhas da cameleira, só eu sei como são verdes-verdes, como os olhos da Joaninha de Garrett, porque as vi verdejar a cada manhã. Conheço a paleta de cores de cada folha de hortênsia, porque fui eu que as pintei a aguarela, e se-lhes o tacto porque lhes passei os dedos mil vezes cem mil vezes. Ninguém, melhor do que eu, sabe porque nasceram misteriosamente, diz-se, as violetas, que se escondem por debaixo das hortênsias, sei que murcham porque se sentem cansadas do seu luto-roxo. Só eu sei ler, nos olhos amarelos da gata malhada, a saudação matinal e gozona que só os gatos sabem fazer e que nos deixa preso aos lábios um sorriso de manhã de sol.
Bernardo Soares deixou-nos o palpite. Guiemo-nos por ele durante breves instantes. Pensemos, por exemplo, na palavra “água”. Em qualquer língua que seja, toda a gente lhe conhece o significado, a definição canónica, as suas principais características e utilizações possíveis. O cérebro de cada um tem, com certeza, incontáveis informações acerca da água, mas o saber que dela universalmente partilhamos é claramente geral, assustadoramente oco. Além da definição de água que é partilhada, cada indivíduo a descreve ou pensa no seu conceito sem nunca se desligar da sua própria relação com a própria água, do prazer que é só seu de tomar um banho quente, da sofreguidão com que a bebe quando tem sede e de como fica saciado. Todos o fazem, mas cada um se apercebe do mesmo à sua própria maneira.
Os japoneses, por exemplo, têm duas palavras para “mãe”. Fazem uma distinção muito clara quando se referem à mãe de outrem e à sua própria mãe. Não terá isto toda a lógica do mundo? Se todos sabemos o que é uma “mãe”, mas se todos pensamos na nossa própria mãe como diferente de todas as outras, não deverá ela ser mais do que o vago conceito do ser que nos trouxe ao mundo? A “mãe”, como todos a imaginamos, é aquela que nos acarinha e trata de nós, que cozinha e arruma a casa, que nos beija a testa e nos vai carregando pela vida, que é mulher corajosa e “pau-para-toda-a-obra”. Mesmo assim, esta “mãe convencional”, ou “mãe desejável”, é sempre diferente da nossa, porque a mão que nos acarinha não é a mesma, porque o seu cheiro é especial, porque a boca com que nos beija é só dela e aquele beijo é exclusivamente nosso.
Esta manhã olhei pela janela e o céu estava azul e o sol já brilhava como deve em tempo de Primavera. Mas os outros já o sabiam. Reparei, mais uma vez, em como o pinhal voltou a verdejar em tão pouco tempo. Tantos outros repararam no mesmo. As grandes pintas amarelas, ao longe, no limoeiro da vizinha, chamaram-me a atenção e olhei para elas demoradamente. Outros já o fizeram. Deixei cair os olhos nas folhas escuras da cameleira, nas hortênsias que despontam, nas violetas que vão murchando, na gata malhada que passa e me olha, sorrateiramente. Nada que outros não tenham visto já. Tudo acaba por parecer banal, mas a questão é que eu não falo nem escrevo português. Eu, tal como todo o pensante-falante-que-também-escreve, mordo a linguagem e faço com que se entranhe em mim e seja parte do que sou.
Não pretendo, de forma alguma, tornar isto que escrevo numa enfadonha recensão sobre a apropriação do sistema linguístico por parte do falante. Quero só estar certa de que cada palavra tem em si uma explosão de individualidade. Escrevo na língua com que penso, que foi a que inventei para realizar em palavras mentais ou impressas aquilo que percepciono do Mundo, perante o qual sempre me espanto, ao qual vou adaptando a língua que há. O céu, pinto-o eu com o meu azul-de-céu e o sol tem a forma e o brilho que só eu lhe sei. O pinhal tem o meu próprio verde-luz que nasce ante os meus olhos. Conheço os limões de amarelo-ácido que apenas vejo no quintal da vizinha melhor do que ela. E as folhas da cameleira, só eu sei como são verdes-verdes, como os olhos da Joaninha de Garrett, porque as vi verdejar a cada manhã. Conheço a paleta de cores de cada folha de hortênsia, porque fui eu que as pintei a aguarela, e se-lhes o tacto porque lhes passei os dedos mil vezes cem mil vezes. Ninguém, melhor do que eu, sabe porque nasceram misteriosamente, diz-se, as violetas, que se escondem por debaixo das hortênsias, sei que murcham porque se sentem cansadas do seu luto-roxo. Só eu sei ler, nos olhos amarelos da gata malhada, a saudação matinal e gozona que só os gatos sabem fazer e que nos deixa preso aos lábios um sorriso de manhã de sol.
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