terça-feira, 30 de junho de 2009

Desassossegada como nunca



Penso, desassossego-me, choro,

questiono-me, respondo-me, sossego.

As borboletas são assim,

tocam-nos revelando um esplendor secreto

e logo partem num bater de asas.

Que levem um pouco de mim

e guardem consigo o que levarem,

como eu vou guardar

no fundo do meus olhos

o êxtase de cor

e o som do seu voo leve.

quinta-feira, 4 de junho de 2009

Aniversário


Faço anos. Acordo e abro a janela para ver o sol e sentir o cheiro das rosas do jardim. Corro para o espelho e desolo-me ao ver que já não sou a menina do vestido amarelo, com sapatinhos de verniz. Desassossegada, corro para a varanda e a vó velha não está sentada ao sol. Onde estará ela? Angustiada, procuro o avô pelo jardim, mas não o encontro. Que é feito de nós? As festas com a família toda, a mesa cheia de doces da avó, as notas que me punham nos bolsos à socapa, o pátio que gritava vozes de crianças, o beijo apertado do avô na minha testa, o bolo de aniversário com pintarolas e fios de ovos, receber a primeira nintendo, assistir a uma sessão de Dartacão na televisão velhinha. Para onde foi isso se era tudo tão meu?

quarta-feira, 3 de junho de 2009

«Aniversário»

«No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.

Sim, o que fui de suposto a mim-mesmo,
O que fui de coração e parentesco.
O que fui de serões de meia-província,
O que fui de amarem-me e eu ser menino,
O que fui --- ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui...
A que distância!...
(Nem o acho...)
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!

O que eu sou hoje é como a humidade no corredor do fim da casa,
Pondo grelado nas paredes...
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas),
O que eu sou hoje é terem vendido a casa,
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio...

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...
Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!
Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,
Por uma viagem metafísica e carnal,
Com uma dualidade de eu para mim...
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!

Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui...
A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça,
com mais copos,
O aparador com muitas coisas — doces, frutas o resto na sombra debaixo do alçado---,
As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa, No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...

Pára, meu coração!
Não penses! Deixa o pensar na cabeça!
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!
Hoje já não faço anos.
Duro.
Somam-se-me dias.
Serei velho quando o for.
Mais nada.
Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!...

O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...
»


Álvaro de Campos, 15-10-1929