Ás vezes, como um Orfeu que insiste em olhar para trás, ainda me imagino a entrar em casa da vó Velha. Depois do almoço, nas tardes de sol, corria até aquele portão de ferro, pintado de vermelho. Olhava os vasos coloridos e as andorinhas de barro presas na parede, espreitava a adega, à esquerda e, sem a ver, gritava «vó Ninita!» … Bastava-me o cheiro, que ainda hoje não sei explicar, para saber que ela estava a cozer broa. Lá abria eu a velha porta de madeira, à direita, que dava directamente para o quintal, deitava um olhar às roseiras e às plantas de chá, e ia ter com ela ao compartimento do forno, empoeirado, chamuscado, e lembro-me das grandes pás e das vassouras para raer as cinzas que ficavam.
A vó Velha foi padeira lá para os lados de Ançã. Vinha de uma família pobre, com certeza. Tinha mais de dez irmãos, muitos morreram novos, como era costume na época, e nunca cheguei a conhecer nenhum deles. Era, então, padeira, e eu gostava de a ouvir falar dos tempos em que vinha de barco para Coimbra, distribuir o pão. Talvez a minha trisavó também tenha sido padeira, nunca cheguei a perguntar. Entretanto a Ninita casou com um senhor viúvo, o bisavô Aníbal, que conheço das raras fotografias que ainda temos, e que tinha já uma filha, a minha tia Luz. Depois tiveram dois filhos, a minha avó Alice e o meu tio Gabriel, que ficaram órfãos de pai muito cedo, que vestiam camisas negras e mostravam um ar de felicidade incompleta em todas as fotografias que ficaram. Mais tarde a vó Alice casou com o meu avô Abílio, meu Mestre, que está para mim como Caeiro para Ricardo Reis. A vó Velha nunca gostou do vô Abílio. Na verdade, fazia-lhe “a vida negra”, somente porque na altura era costume as sogras abominarem o genro ou a nora, e vice-versa. Neste caso, o meu Mestre tinha o dom de reagir com infinita serenidade perante qualquer crítica ou provocação. Já quando o meu tio casou, o ódio que existia entre a vó Velha e a minha tia era qualquer coisa tão nítida e consistente que faiscava à vista de todos. Talvez tenha sido por isso que elas estiveram cerca de quarenta anos de costas viradas. Ainda não me contaram essa história, como realmente aconteceu essa ruptura até à morte.
Mas voltemos a casa da vó Velha, há mais de dez anos, a broa quente com manteiga, o leite fresco bebido por uma malga. Como me sabiam bem aqueles lanches. Depois brincava no jardim, subia as escadinhas do canteiro mais alto só para cheirar o alecrim, como se fosse um tesouro e eu gostasse de ver apenas como reluzia. E era mesmo. Depois de lavar a louça numa grande bacia encastrada em pedra mármore, cá fora, a vó Velha punha detergente num copo, ia cortar um pedacinho de uma cana, e dava-me divertimento para o resto da tarde: eu fazia bolas de sabão e gostava de as ver rebentar nas flores, quando elas caíam, docemente, sobre as grandes pétalas coloridas. Mal acabasse o líquido mágico, corria para o sótão e brincava dentro dos grandes cestos de vime. Gostava de olhar pela janela pequenina enquanto ela me ensinava a «Ave-maria» e aquela ladainha que ainda tenho no ouvido «Jesus pequenino, que guardas a chave do Paraíso…». Não me lembro de mais, mas vêm-me à memória tantas outras coisas… a forma como entrançava os seus longos cabelos brancos, como prendia a trança comprida com o travessão negro enquanto me falava do antigamente. Lembro-me de que tinha sempre um Mars para mim, escondido no bolso da bata, dos vestidos que tricotava para as minhas bonecas, do dálmata de louça, o Fiel, dos caramelos espanhóis que me trazia das excursões, do velho relógio de parede que me estava prometido desde os primórdios da minha existência, porque a vó Velha sempre soube ver nos meus olhos o fascínio pela maquineta de corda centenária que me fazia sorrir a cada badalada.
Sempre a conheci velha. Já era velha, a vó Ninita, quando eu nasci. Faria noventa e nove este ano. Desde que me lembro de ser gente, sempre que me dava uma prenda, pelo meu aniversário ou pelo Natal, dizia-me baixinho «aproveita que para o ano já cá não estou». Sempre soube que ela ia morrer. Um dia mudou-se cá para casa, contra a sua vontade. Tornou-se muito resmungona e implicativa. O relógio de corda, que veio com ela, doía-me a cada badalada. Das escassas vezes que o meu tio a vinha visitar, e parece-me imperativo referir que mora não mais que quatrocentos metros daqui, talvez não mais que duas vezes por ano, em Abril, pelo aniversário dela, e pelo Natal, ludibriava-a com presentes caros e ela idolatrava o filho, como se do próprio anjo Gabriel se tratasse. Quanto à minha avó, que cuidava dela, numa estranha transição do papel de filha para o de mãe, era constantemente “a maldita”, “a que-não-lhe-dava-importância”, “a que-iria ser-atormentada”. A vó Velha piorava de dia para dia, e isto parece ter durado anos infinitos. Parece que ainda ouço os “ais” que vinham do andar de cima, longos, ritmados, incessantes. A vó Alice vergava de cansaço e um inconformismo gigantesco nascia dentro de mim. A vó Velha ia morrer, sabia-se.
A notícia acabou por ser inesperada, tal como a minha reacção, tantas vezes ensaiada para não vacilar perante o inevitável. Eu pensei, por instantes, no que sempre me tinham dito, que vaso ruim não quebrava e a vó Velha sempre foi perfeitamente lúcida, fisicamente rija, como uma camponesa. Quebrou e eu não consegui controlar as emoções, não tinha planeado assim. O funeral foi um cortejo de cinismo e arrependimento que vou tentando esquecer.
Sei que compreendo agora a vó Velha. O ódio que sentia, não por alguém em especial, mas pelo simples movimento irreversível do mundo, que ela não conseguia compreender. O amor não correspondido por um filho que a acarinhava senão pela obrigação moral de o fazer. A vontade de voltar ao jardim e colher as folhas do chá, cheirar as rosas, preparar a massa e fazer uma broa, dormir na cama que sempre conheceu como sua. A vó Velha, que só conheceu muito tarde o telefone, o elevador, as sanitas com canalização, a televisão, que ela ouvia tão alto durante todo o dia, que nunca soube o que era um computador ou um telemóvel, até do que pouco ou nada conheceu lhe era custoso pensar em não mais o ver. A impossibilidade de tudo. A capacidade de nada.
A vó Velha foi padeira lá para os lados de Ançã. Vinha de uma família pobre, com certeza. Tinha mais de dez irmãos, muitos morreram novos, como era costume na época, e nunca cheguei a conhecer nenhum deles. Era, então, padeira, e eu gostava de a ouvir falar dos tempos em que vinha de barco para Coimbra, distribuir o pão. Talvez a minha trisavó também tenha sido padeira, nunca cheguei a perguntar. Entretanto a Ninita casou com um senhor viúvo, o bisavô Aníbal, que conheço das raras fotografias que ainda temos, e que tinha já uma filha, a minha tia Luz. Depois tiveram dois filhos, a minha avó Alice e o meu tio Gabriel, que ficaram órfãos de pai muito cedo, que vestiam camisas negras e mostravam um ar de felicidade incompleta em todas as fotografias que ficaram. Mais tarde a vó Alice casou com o meu avô Abílio, meu Mestre, que está para mim como Caeiro para Ricardo Reis. A vó Velha nunca gostou do vô Abílio. Na verdade, fazia-lhe “a vida negra”, somente porque na altura era costume as sogras abominarem o genro ou a nora, e vice-versa. Neste caso, o meu Mestre tinha o dom de reagir com infinita serenidade perante qualquer crítica ou provocação. Já quando o meu tio casou, o ódio que existia entre a vó Velha e a minha tia era qualquer coisa tão nítida e consistente que faiscava à vista de todos. Talvez tenha sido por isso que elas estiveram cerca de quarenta anos de costas viradas. Ainda não me contaram essa história, como realmente aconteceu essa ruptura até à morte.
Mas voltemos a casa da vó Velha, há mais de dez anos, a broa quente com manteiga, o leite fresco bebido por uma malga. Como me sabiam bem aqueles lanches. Depois brincava no jardim, subia as escadinhas do canteiro mais alto só para cheirar o alecrim, como se fosse um tesouro e eu gostasse de ver apenas como reluzia. E era mesmo. Depois de lavar a louça numa grande bacia encastrada em pedra mármore, cá fora, a vó Velha punha detergente num copo, ia cortar um pedacinho de uma cana, e dava-me divertimento para o resto da tarde: eu fazia bolas de sabão e gostava de as ver rebentar nas flores, quando elas caíam, docemente, sobre as grandes pétalas coloridas. Mal acabasse o líquido mágico, corria para o sótão e brincava dentro dos grandes cestos de vime. Gostava de olhar pela janela pequenina enquanto ela me ensinava a «Ave-maria» e aquela ladainha que ainda tenho no ouvido «Jesus pequenino, que guardas a chave do Paraíso…». Não me lembro de mais, mas vêm-me à memória tantas outras coisas… a forma como entrançava os seus longos cabelos brancos, como prendia a trança comprida com o travessão negro enquanto me falava do antigamente. Lembro-me de que tinha sempre um Mars para mim, escondido no bolso da bata, dos vestidos que tricotava para as minhas bonecas, do dálmata de louça, o Fiel, dos caramelos espanhóis que me trazia das excursões, do velho relógio de parede que me estava prometido desde os primórdios da minha existência, porque a vó Velha sempre soube ver nos meus olhos o fascínio pela maquineta de corda centenária que me fazia sorrir a cada badalada.
Sempre a conheci velha. Já era velha, a vó Ninita, quando eu nasci. Faria noventa e nove este ano. Desde que me lembro de ser gente, sempre que me dava uma prenda, pelo meu aniversário ou pelo Natal, dizia-me baixinho «aproveita que para o ano já cá não estou». Sempre soube que ela ia morrer. Um dia mudou-se cá para casa, contra a sua vontade. Tornou-se muito resmungona e implicativa. O relógio de corda, que veio com ela, doía-me a cada badalada. Das escassas vezes que o meu tio a vinha visitar, e parece-me imperativo referir que mora não mais que quatrocentos metros daqui, talvez não mais que duas vezes por ano, em Abril, pelo aniversário dela, e pelo Natal, ludibriava-a com presentes caros e ela idolatrava o filho, como se do próprio anjo Gabriel se tratasse. Quanto à minha avó, que cuidava dela, numa estranha transição do papel de filha para o de mãe, era constantemente “a maldita”, “a que-não-lhe-dava-importância”, “a que-iria ser-atormentada”. A vó Velha piorava de dia para dia, e isto parece ter durado anos infinitos. Parece que ainda ouço os “ais” que vinham do andar de cima, longos, ritmados, incessantes. A vó Alice vergava de cansaço e um inconformismo gigantesco nascia dentro de mim. A vó Velha ia morrer, sabia-se.
A notícia acabou por ser inesperada, tal como a minha reacção, tantas vezes ensaiada para não vacilar perante o inevitável. Eu pensei, por instantes, no que sempre me tinham dito, que vaso ruim não quebrava e a vó Velha sempre foi perfeitamente lúcida, fisicamente rija, como uma camponesa. Quebrou e eu não consegui controlar as emoções, não tinha planeado assim. O funeral foi um cortejo de cinismo e arrependimento que vou tentando esquecer.
Sei que compreendo agora a vó Velha. O ódio que sentia, não por alguém em especial, mas pelo simples movimento irreversível do mundo, que ela não conseguia compreender. O amor não correspondido por um filho que a acarinhava senão pela obrigação moral de o fazer. A vontade de voltar ao jardim e colher as folhas do chá, cheirar as rosas, preparar a massa e fazer uma broa, dormir na cama que sempre conheceu como sua. A vó Velha, que só conheceu muito tarde o telefone, o elevador, as sanitas com canalização, a televisão, que ela ouvia tão alto durante todo o dia, que nunca soube o que era um computador ou um telemóvel, até do que pouco ou nada conheceu lhe era custoso pensar em não mais o ver. A impossibilidade de tudo. A capacidade de nada.
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