segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Ícaro a tinta preta


Manda-me calar, porque eu falo demais. E quem tem por hábito fazê-lo costuma perder-se em novelos de ideias e, com as pontas soltas, acaba por desviar a atenção para os gestos toscos de quem tenta remediar o fio frágil com um nó atarantado. Perde-se o sumo que escorre pelo meio das palavras ditas, vai pingando nas reticências e fica derramado, sem remédio, o sentido no chão. A sintaxe foge por entre a semântica descuidada enquanto o discurso toma a forma de uma melodia sem mais valor do que o ritmo que contém e o interlocutor lá vai batendo com o pé no chão, sentindo apenas a sonoridade dos vocábulos e não já aquilo que serviam para dizer. Falar muito é nada. É conhecer o lado esquerdo do dicionário e nem uma letra além disso.
Diz-me para não escutar, porque ouvir dói e desgasta a singeleza dos sentidos. Farei orelhas moucas ao que me é dito e formarei uma opinião só minha. Não me importa não mais ouvir o som poderoso do mar revolto, o canto alegre do pássaro pela manhã, a voz cândida das tuas palavras, a nona sinfonia… Porque mesmo não escutando, tenho em mim o poder de reproduzir para dentro a melodia que me aprouver. O poder da imaginação é de tal forma demolidor que posso sentir em mim o soprar do vento num jardim de Osaka, o sussurro das mãos da avó quando cuidam das orquídeas lá fora, o grito medonho do céu zangado num estrondo de trovão.
Tapa-me os olhos, porque o mundo não é uma imagem assim tão bela. Abdicaria da visão até porque me basta a memória fotográfica dos rostos e dos lugares que me são queridos. Mesmo os que não voltarei a ver estão gravados cá dentro. E os lugares longínquos em que penso, sei-os porque os sei, e isso já me basta. Se fechar os olhos vejo o monte Fuji daqui, de tão longe, e sei bem como a neve o cobre som suavidade, tornando-o ainda mais belo. Posso até perder o Norte e mesmo assim sei como seguir para Oriente.
E se pedires que perca o sentido táctil, será como perder o olfactivo ou mesmo o gustativo, porque tudo isso está ao meu alcance dentro do meu mundo sem sentidos. Porque conheço tão bem o toque suave da seda, como o doce odor do teu pescoço, como o sabor aconchegante de um chá verde. Crio, mentalmente, uma bola de neve, e ainda assim lhe sinto o frio e a consistência gelada. Basta-me imaginar com saudade o aroma forte das acácias na Primavera para que me pareça que estou mesmo perto de uma que em nada se inibe de exalar o seu olor amarelo. Sei degustar de cabeça umas belas tiras de sashimi e saber-lhes o fresco que se me desfaz na boca, com o subtil picante do wasabi.
Mas a pena, Dédalo, a caneta alada, não ma tires. Não me cortes as asas, porque sou Ícaro ajuizado. Jamais voarei demasiado perto do Sol. Mas é com asas de tinta que, por vezes, tenho de abandonar Creta para me perder na escrita, bem mais sensata do que o discurso falado, com menos reticências e mais esclarecida, com menos espaços em branco passíveis de ser preenchidos por mal-entendidos, a grandiosa ponte para o meu mundo onde tudo é claro, colorido e autêntico, onde não há cruel rei Minos que nos prenda, onde encontro as respostas às minhas perguntas, onde sei que está a estrada dos tijolos amarelos e devagarinho, passo a passo nos meus sapatos de lantejoulas vermelhas, vou andando, tijolo em tijolo, numa busca lenta de mim mesma enquanto vou colhendo guloseimas das árvores rosadas que indicam o caminho. E mais do que encontrar o feiticeiro, quero aproveitar a viagem.

Finalmente um soneto


Na mão trouxe o pomo dourado
Apareceu, qual cisne, ela Leda.
Tanta luz deixou-a assim queda,
Que o julgou Prometeu alado.


Deixou ele cair o manto em seda.
O fogo amainou por um bocado.
Ela reconheceu o rosto rosado
No intervalo de uma labareda.


E quis ela por momentos
Num devaneio de gestos lentos
Num pesadelo em tons de preto


Perfumá-lo com unguentos,
Mas quando relembrou lamentos
Exorcizou-os num soneto.

domingo, 1 de novembro de 2009