sexta-feira, 29 de maio de 2015

Sobre tatuagens, ou a propósito do preconceito

work by Angelique Houtkamp from Salon Serpent Tattoo

Há quem goste de fazer peelings, um botox que suba as maçãs do rosto ou um sobrolho já descaído, há quem goste de ser garrido, há quem traje sempre de fúnebre cor. Há os que investem em iates, casas grandes, carteiras de marca, roupas caras, maquilhagem, gigantescas unhas de gel. Há quem use brincos espampanantes, penteados exuberantes, vestidos de cocktail ou sapatos de sola vermelha. Tudo legítimo. Cada um faz o que quer com o que tem.
Qual a diferença entre a aparente normalidade de tudo isto e a berrante anormalidade da tatuagem? Num mundo que apregoa, ou começa a apregoar, o direito à inteira soberania do próprio corpo, o indivíduo tatuado continua a ser encarado de esguelha, olhado de lado, rotulado de marginal ou drogado, louco por aceitar a dor, mais louco ainda pela perenidade de uma escolha. Pior do que isto, o indivíduo tatuado, continua a ser rejeitado em entrevistas de emprego porque os patrões limpinhos não querem apresentar aos seus imaculados clientes uma imagem que parecem considerar suja. É a arte suja? Será a latência de uma ideia de mácula da própria pele vinda de um levítico ponto não sei o quê? Será assim tão rebuscada a ideia de marcar para sempre, em nós mesmos, uma significância nossa?
Compreenda-se que a motivação primeira da aceitação da dor é sustentada por uma forte razão. Note-se, ainda, que o próprio processo doloroso funciona, em si mesmo, como um acto de purga da mesmice diária, como uma homenagem merecida a um ego que é mais do que essa mesmice. São inúmeras as razões que levam alguém a tatuar-se: seja egotrip, uma homenagem familiar, uma manifestação de um gosto, uma temporária imortalização de uma ideia, um conceito, um ídolo, um grito de revolta, um memento apenas. Creiam que, de qualquer das formas, é forte a razão, a vontade inabalável e destemida que leva o verdadeiro amante da tatuagem a esforçar-se por marcar na pele aquilo que o define. E o processo, enquanto purga, ou rito iniciático em busca de um objectivo final, acaba por ser, tanto para o tatuado como para o tatuador, um momento de prazer, de partilha, de encanto, de auto-gnose, de suplantação de limites próprios.
E, no fim, a perenidade. Que confusão provoca isto em todo o tipo de gerações! – não é, portanto, uma questão geracional, a da marginalização da tatuagem. Se para a sociedade moderna, na qual tudo funciona na lógica do usa-e-deita-fora, do troca-por-um-novo, o conceito de ‘para sempre’ pode ser difícil de entender, não é porque as gerações anteriores vêem a tatuagem como um acto de rebeldia, de comportamento marginal, de auto-segregação. Uns assustam-se com o conceito de intemporalidade – a esses digo que ninguém sai daqui vivo, daí a tatuagem ser, como tudo, temporária – outros não estão simplesmente dispostos a ver um pouco mais longe – e com esses pouco me importo. Para quem gosta de tatuagem, importa, sim, o resultado final, a felicidade de ver concretizado um projecto que não é só nosso, mas também fruto da nossa dor e suor, representante apenas de outras dores e suores maiores que se vai vivendo vida fora.
‘Ficava bonito num quadro, ou numa t-shirt’. Estas pessoas ficavam bonitas caladas, respeitando o gosto alheio. Porque eu também posso achar que há caras que ficariam bem num freak show, mas não o digo por respeito. É arte, exponho-a onde quero. ‘Faz cancro da pele, porque os poros não respiram’. Os vossos cérebros respirariam um pouco melhor com mais informação. Procurem-na. ‘Mas não vale a pena’. Mas quem é que decide isso? ‘Mas como é que arranjas trabalho depois?’ Prefiro ser desempregada a trabalhar para um patrão preconceituoso e, mais do que isto, se não houver quem transgrida a norma que alguém inventou, quem a vai quebrar? Não são as tatuagens que nos tiram capacidade de desempenhar o nosso mister com a mesma mestria de quem tem a pele imaculada. Óptimos profissionais são tatuados, embora, infelizmente, tenham que o esconder do olho mau. Sabem quem também merece apreço? Os tatuadores. São artistas de topo, que pintam a pele, que têm o dom de nos ler as angústias e as glórias e saber desenhá-las exactamente como as sentimos, a rasgos dolorosos, como as coisas importantes devem ser. Muita gente hoje recorre à tatuagem, não só para tapar estrias ou outros desconfortos pessoais de menor gravidade, como ‘repõem’ com exactidão mamilos que, por alguma razão, tiveram que deixar de o ser, ou alguma pigmentação que falte a quem sofra de vitiligo ou problemas semelhantes. Há mulheres que tiram o peito e, não querendo repô-lo, orgulhosamente exibem uma tatuagem invariavelmente bonita no peito que lhes falhou.

Respeitemos, pois, tatuadores e tatuados, como se respeitam artistas e público, médicos e pacientes, professores e alunos, clínicas de estética e seus clientes, ginásios e atletas, spas e pessoas relaxadas, cabeleireiros e belas trunfas, gente como nós, diferente como deve ser.  

segunda-feira, 25 de maio de 2015

Das mentiras de Maio


Maio, sabes como te olho de soslaio, sempre que vens de mansinho, cheio de flores e carinho, teus ricos odores e tantas, tantas cores! Trazes o calor que me sufoca, és a mão que me tapa a boca e o cordel que já fez de mim marioneta. Escondes-te por detrás da áurea aliança de Perséfone e Deméter, mas, por mais que as ocultes, são sempre amargas tuas lembranças, carregadinhas de fedor a éter. Como os deuses, mês de Maria - falso como a mulher que paria, sendo ainda mais casta que qualquer Primavera! Pudera! - tanto dás como tiras, floresces em esplendor, mas ceifas sempre esta ou aquela flor, das minhas, das que são as mais belas para mim -  chegas pomposo, em bouquet, mas detróis meu suado e precioso jardim!  E de olorífera má intenção, provocas-me tamanha constipação, que me pões a espirrar assim! Ai, mal de mim, falso mês! Que venha o estio de vez, que esse ao menos traz a verdade da sofrida temperatura, que ou me fecha em fresca clausura, ou me leva para junto da mais pura brisa de mar.

sexta-feira, 8 de maio de 2015

Diálogo do Silêncio



Ah, Coimbra, é tão difícil morar-te! A cada Maio nos trazes uma negritude que pesa mais do que a saudade, que de ano para ano piora, que de Queima a Queima sufoca. Deixas queimar as ruas de estrondo e devassa, e a cada estudante que passa, já nele não vejo a estudante que fui. São quase as mesmas capas, as desconfortáveis chanatas, o mesmo fétido traje posto a um canto a cada manhã. Ah, mas aquele espanto, a vontade, o querer, o tal espírito de que se fala , o saber para onde se vai, o sentir da balada, o amor com que se sai, encafuado na veste que badala, tolhido o andar do pé que dói, empurrado pelo sorriso amigo, abraçando tudo o que já foi - disto já não há!

Vendeu-se o fado, Hilário, não é mais teu, é do Estado. É pertença de armário de comissão, do comissário ladrão, que reduz concertos a cantigas de jajão, que esmoifa notas em jantares de reunião. Ai, Hilário! Se o saber se vende, se se vende tanta cerveja, porque se não há-de vender, pois, a festa? Que levem a sua essência também, a custo zero, mas não a cidade que reclamam! Não, obstinados, de fatiota ajanotados, manada de joelhos arrastados no porco chão do vosso vazio. Tenham brio! Respeito pela alma mater que vos acolhe, pelo rio que vos alimenta a vista, pela gente que é de cá e vos recebe. Um respeito que está acima de qualquer dux, de qualquer praxe, do doutor que vos escolhe ou do que melhor vos engraxe, do que vos manda o cenho baixar, noite fora - só a cabra tem o direito de vos dizer 'agora'! Só vós tendes o poder de dizer 'chega!', usando essa capa briosa de consciência acesa.

Ah, Lusa Atenas, que amas os teus filhos por igual, quem é de fora e quem é de cá, os que te fazem bem e os que te querem mal, gente boa e gente má, deste esquema piramidal que deixas crescer, por qualquer razão que meu coração desconhece. Sacode a peneirice, mulher primeira, és a pura mae guerreira, ventre dos que se não calaram! Traz teus filhos de volta à essência, que urge tanto e há pertinência de pureza. Sê, de novo, uma lição!