quarta-feira, 25 de março de 2009

Como Orfeu II


Não resisto, qual Orfeu desobediente, a espreitar as brechas fugazes que o passado vai semeando, portas encostadas ao acaso que alguém se esqueceu de fechar. Antes as tivessem trancado para sempre e o pensar não doía na memória. As minhas mãos estendem-se para as fotografias velhas e os dedos ébrios tentam trazer de volta aqueles rostos baços, que tempo vai tentando apagar.

Porque olhaste para trás, Orfeu? Atrás agora é abismo e nada, e esse nada nublado e desconhecido é a base do terror da morte que só os orates, sãos dos olhos, ignoram sabiamente. Preocupamo-nos com a morte ansiosamente, desesperadamente, mesmo que não tenhamos consciência disso. Deixamos de lado os mistérios ocultos da própria morte, ou porque não queremos sequer pensar nisso, ou porque todas as teorias que tentam explicá-los acabam por nos parecer densamente ocas, consistentemente vagas, conscientemente absurdas. O que realmente nos aterroriza é a ausência física, um nunca mais tornar a ver, nunca mais ouvir, nunca mais cheirar. A mudança irreversível que faz crescer por dentro uma certeza de fim, de um inevitável nunca mais. Queria tanto poder acreditar na tentada teoria reconfortante que nos faz crer que a morte é um sono agradável, um eterno descanso. Mas recuso-me a acreditar nisto pelo simples terror de pensar num sono do qual jamais se acorda. É absurdo e aterrador. Desassossego-me. «Pequena vida consciente, sempre/ Da repetida imagem perseguida/ Do fim inevitável». (Ricardo Reis)

Foi quando os “comedores de lótus” do professor Delfim devoraram Satyricon que a consciência do fim de tudo e da visão de um imenso nada se abateu sobre a minha cabeça e foi trepando, gananciosa, a montanha dos meus medos intrínsecos. Lembro-me do meu próprio espanto perante o espanto de Encólpio e Gíton no festim de Trimalquião. O anfitrião apreciava, realmente, o requinte ostensivo, o espectáculo de si mesmo, o que o fazia cair no abismo do ridículo e do mau gosto. No entanto, os seus gestos apotropaicos, a bizarra encenação da sua própria morte, a preparação prévia de um epitáfio e uma curiosidade imensa quanto às reacções dos outros perante a sua partida não me pareceram atitudes totalmente absurdas. O que ele tinha era uma infinda e assustadora consciência da contagem decrescente do tempo de uma vida. Ao contrário de Trimalquião, eu sou avessa aos tiquetaques dos relógios, ao bater das horas porque, tal como ele, tenho plena consciência de que cada tiquetaque é um ladrão de vidas, um pulha que nos grita finitude. E como será a reacção dos que me são próximos? Que dirão de mim? Escrever-me-ão versos no epitáfio ou terei de ser eu mesma a fazê-lo? O que farão com as coisas que guardo com carinho? Que restará de mim senão memórias?

Porque continuo a olhar para trás, como Orfeu? Olharia Trimalquião para o seu passado no pouco tempo em que não se preocupava com o futuro? Eu continuo esperar, de olhos bem abertos, rasgos de outros tempos para neles me perder, propositadamente. E então, quando o passado me leva de volta por instantes, fecho muito os olhos para ver os meus mortos queridos, para que voltem a ser presente, para que nunca lhes esqueça a voz e possa sempre saber de cor os traços dos seus rostos quando sorriam. Despiram os trajes da vida e deixaram-nos por aí, ferrões aguçados no fundo da memória. A bata florida e desbotada da vó velha parecia ainda ter no bolso direito o chocolate que comprava na mercearia e que era só para mim. Quando encontrei a boina axadrezada do avô, esquecida no velho toucador, embora soubesse que tinha sido lavada, quis sentir-lhe o cheiro dos cabelos que penteava meticulosamente, depois de tirar o pente castanho do bolso traseiro das calças. A camisola vermelha que te conhecia, levaste-a contigo, e, ao vê-la vestida no teu corpo inerte, nesse último dia, fez-me temer destapar-te a face para te beijar, amigo, porque quero recordar para sempre o teu rosto menino. Estas são quase presenças vagas que parecem querer, por breves instantes, compensar as ausências abismais. São conforto em forma de lágrimas.

Guardo no fundo não sei bem de quê nem onde todas as memórias-cheiro, memórias-sorriso, memórias-palavra, memórias-segredo, para com elas me reconciliar e poder ver, com mais clareza, o meu futuro. Não quero nunca desfazer-me das minhas memórias como se faz aos livros que contam as histórias de antigamentes, quero antes levá-las (sim, levá-las, não carregá-las, mas transportá-las com leveza) comigo pela vida fora, porque a ela pertencem, e torná-las vivas em palavras-história. Os meus mortos queridos deixaram muitas histórias por/para contar. Encarregar-me-ei disso. Sem lágrimas, um dia.

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