sábado, 26 de fevereiro de 2011

Filme do Desassossego ou "Primeiro estranha-se"


Quando se ouviu dizer que João Botelho filmava o Desassossego, a questão que coloquei a ninguém foi “Como raio irão concertar uma história coerente a partir de uma imensidão de fragmentos? Como se prende uma audiência a um texto que é, por costume, lido durante o tempo de uma vida, de modo desordenado, conforme as palavras vão agarrando mais ou menos os olhos? Aguardei.

A primeira sessão do filme escapou-se-me numa corrida contra o tempo e a curiosidade ardia por dentro. Finalmente o filme havia regressado a Coimbra. As portas do TAGV estavam encobertas por uma pequena multidão. “Muita gente jovem”, sussurrava uma senhora de avançada idade ao ouvido de quem a acompanhava. Já não me recordo da última vez que assisti a uma sessão de cinema sem intervalo, sem o sacudir das pipocas dentro da caixa de cartão, na escuridão completa. O lugar era dos melhores: a meio da sala, um pouquinho mais acima. Seria perfeito se o indivíduo da frente fosse uns dez centímetros mais baixo, o que me permitiria ver perfeitamente o canto inferior direito da tela.

O burburinho que se fazia ouvir dentro da sala cessou assim que uma luz forte nos feriu os olhos, que já se haviam habituado à cegueira da sala escura. O marulho. A dissertação primeira. Depois, a imagem familiar de um homem franzino, de sobretudo acastanhado e óculos redondos de haste metálica, sentado à mesa do café: era Fernando Pessoa! Numa mesa ao lado, um homem de semblante carregado, aspecto descuidado, idade indefinida, algures entre uma idade adulta sofrida e uma juventude à qual o brilho teria sido roubado pelos tormentos, o mesmo que há em qualquer objecto novo e que se vai perdendo, à força do desgaste. Era Bernardo Soares, a angustiada figura. Um desacato no estabelecimento nocturno, de aparência duvidosa, dá azo a um curto diálogo entre ortónimo e heterónimo, no qual o último refere o seu livro de fragmentos e logo o primeiro se prontifica a oferecer-se para o ler, a fim de estudar as possibilidades de o editar, cenário perante o qual Soares não se mostra especialmente entusiasmado (lembremo-nos de que Pessoa só viu editada uma obra sua, a “Mensagem”, composta por 44 poemas).

As imagens criam o ambiente pessoano propício ao pensamento livre, ramificado, repleto de analepses e prolepses, incompleto e inacabado, perfeito exercício mental. Não nos perdemos na história, apenas ficamos enrodilhados na catadupa de raciocínios que Soares vai cruzando e presos à fonética com que soam: fiéis excertos do Livro do Desassossego, tão perfeitos quanto esperávamos, beliscadores de consciência, encantadores quando ouvidos dizer por Cláudio da Silva, que sabe colocar as palavras e introduzir as pausas nos momentos exactos, juízos e silêncios cristalizados no preciso intervalo temporal que marca a diferença entre o distinto e o vulgar. E não é só o tom, a dicção, o esmero no dizer: Cláudio da Silva não vestiu Soares, fundiu-se com ele, sugou-lhe a intimidade no olhar esgazeado, no sofrimento febril da expressão facial, no modo nervoso de se deslocar, nos movimentos descontrolados das mãos, onde se lê o descontrolo e a perdição dos sentidos. É inebriante o momento em que ele se senta, ansioso, à secretária, e escreve torrencialmente, sem que a mão consiga acompanhar a rapidez do seu pensamento.

Posso entendê-lo como um momento representativo da genialidade pessoana ou, então, como uma tentativa de puxar para o real concreto a matéria demente dos sonhos de Soares em pleno processo de criação, contudo, desagradou-me profundamente a versão de ópera da Marcha Fúnebre para o Rei Luís II da Baviera. Não tiro o mérito a quem musicou o texto, nem a quem interpretou o trecho, tanto que Angélica Neto e Elsa Cortez provaram ter espantosos dons vocais. Desagradou-me como ouvir cantar Camões ou como ouvir declamar excertos de textos de autoria portuguesa com qualquer tipo de sotaque. Não me soa bem, só isso.

Depois de longos momentos passados na troca de conjecturas da tela para nós mesmos e de nós mesmos para o nosso próprio interior, eis a surpreendente resolução do equívoco inicial, que nos acompanhou ao longo de todo o tempo: Pessoa tem consigo o manuscrito do Livro do Desassossego, que nega veementemente ser seu. Bem sabemos que Bernardo Soares, aquele que pessoa conheceu no café e com quem se encontrou noutras ocasiões era, “apenas," um valioso fruto da sua produtiva imaginação.

O que nos fica na memória? A cor local da sociedade portuguesa nos anos 30/40, a aparente e propositada alienação de Pessoa da própria realidade social, a forma como as inquietações e reflexões de Soares saem de si mesmo e se reflectem nas personagens secundárias e nas secundaríssimas (até mesmo em nós, espectadores) que vai, silenciosamente observando. E quando me perguntam como foi, recordo-me dos longos monólogos e das palavras preciosas que mais depressa atingiam os sentidos do que o próprio pensamento, demasiado lento para o ritmo vertiginoso do raciocínio pessoano. Perturbou-me, martelou-me na memória durante uns dias. Desassossegou-me os sentidos. “Primeiro estranha-se…”, respondo eu. Parece ter atingido o objectivo.