domingo, 23 de março de 2014

Alucinação primaveril ou das febres nocturnas



Chegara em força, a Primavera, e eu não a queria já. Gosto que venha de passada lenta, mostrando-se aqui, surgindo ali, entrevendo-se além e, aos poucos, que se mostre, pois então no seu esplendor. Eram estas as cogitações que ondulavam dentro de mim, de um corpo mal habituado ao calor, temente ao poder de Apolo, amigo de uma brisa amena e nada menos fresco do que isso. 

Ora sucedeu que, dias depois do encontro primeiro, prazenteiro e animado entre Deméter e Perséfone, Morfeu me pegou na mão e me levou ao lado de lá da realidade, a um mundo paralelo, muito, muito mais belo, onde os desejos são quase-ordens, mas onde os monstros têm proporções imensas. A cada visita ao outro lado do mundo, a Fortuna é quem nos carrega nas mãos e dita, qual Quixote, se são moinhos, se são gigantes, aquilo que o sono nos reserva para purificação da mente. Desta feita, neste sono, as rodas da Fortuna giraram a meu favor e Morfeu levou-me para onde nevava. 

Não estávamos em local distante nem estranho - era a porta de minha casa, o regaço da minha alma! Como nunca, nevava de mansinho e o jardim, as flores de Páscoa, a velha cameleira, o portão verde, tudo tomava para si a cor nívea dos flocos molhados e grande. E eram tão nítidos os flocos, as suas formas perfeitas, as tonalidades azuladas que mostravam ao cair, de encontro ao chão, trilhando estradas de céu sem rumo certo. E caíam, suaves, sem barulho nem noção de que caíam assim, tão devagar, tão belos, formando uma camada de nuvem sob o céu azuladão.

Quis sair, experimentar a alva benesse que, aqui, é fenómeno meteorológico. E não a queria, à neve, só para mim! Chamei-os, para que viessem ver o espectáculo que estava do outro lado da janela. Chamei-os uma vez mais para que corrêssemos para a rua, para que puséssemos os nossos pés na bárbara substância, para que as nossas mãos pudessem saber que toque tinha! Lembro-me de olhar para cima e aproveitar a visão de cada floco cadente, contra o azulão do grande tecto do mundo. Rodopiei, imitando aquela valsa leve e calada, deixando-me cair, também, entre os outros farrapos - talvez querendo, também, saber o que era ser neve.

Acompanhou-me, de novo, Morfeu, ao lado de cá. Deixou-me numa manhã solarenga e distante do níveo momento de onde acabáramos de chegar. Tudo ficou mais fresco e a Primavera começou a saber a groselha gelada.


De um quase-pesadelo

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Fugíamos, os três - éramos,pelo menos, três - por entre os escombros de casas, de escolas, de supermercados. Tudo estava vazio, pilhado, destruído ao nível de um cenário bélico. De que fugíamos nós, não sei bem: julgo que se tratava de um mal imenso que teria vindo ao Mundo para arrasar com a existência humana. Ou, pelo menos, a nossa realidade, o grande Mal tinha vindo para arrasar apenas a nossa pequena realidade, agora caótica.

Num momento seguinte, a porta de casa. E a casa intacta. Na esperança do abrigo, um outro perigo, ou um diferente cambiante do grande Mal, se punha perante nós, já exaustos. Eis que, de repente, sem saber de onde nem como, surgem três, sete, doze animais medonhos. Poderia descrevê-los como javalis alados, ou como cães raivosos com asas de morcego, mas não eram nada disso, ou antes, eram tudo isso numa morfologia exótica e de assustadoras proporções. Tentávamos desesperadamente entrar em casa enquanto enxotávamos aquelas grande gárgulas que, ou se mostravam interessadas em tragar os felinos da casa, com uma atitude horrendamente voraz, ora se penduravam no tecto, quais morcegos, ficando de focinho ao nível das nossas cabeças. E era com paus e traves que lhes batíamos e os enxotávamos, sem grande sucesso. Qual Hidra de inúmeras cabeças, apareciam as criaturas malignas com uma cadência directamente proporcional àquela com que eram eliminadas. E não paravam de chegar, e o desespero era grande, e a esperança já parca.
Após grande hiato, durante o qual poderá ter acontecido o inimaginável, eis que a nossa realidade pós-apocalíptica parecia livre de ameaças, ainda que tudo o que a vista alcançasse parecesse pouco mais do que ruína e miséria. Nisto, há uma velhota rechoncuda que, deitada em cima de uma velha bicicleta, exercita as pernas levantando dois leves pneus. «Vês?!», diz-me uma voz.