sábado, 28 de março de 2009

Como Orfeu III



Já quase não havia sol quando voltei para casa, ao fim da tarde. As nuvens cobriam os raios ainda quentes que se ia desprendendo do céu quando, subitamente, me deu uma vontade imensa de visitar a casa da vó velha. Queria só ver, recordar, matar saudades-meninas que ainda me perseguem, de vestido amarelo e sapatos de verniz. Ao jeito de Orfeu, quis olhar para trás, só por um segundo, para ter calmas e certezas e, com esse olhar, como ele, anulei a última hipótese de conservar o que me era querido.

Sem pensar duas vezes, dirigi-me àquele beco estreito que mal consegui reconhecer, parecia-me mais estreito que nunca, como se tudo fosse uma miniatura de um passado-infância. Que saudade imensa. Que desilusão tremenda. Os muros pintados de vermelho e os vasos riscados de cor e carregadinhos de sardinheiras já não existiam. Parei diante do velho portão preto, que havia sido vermelho e, antes disso verde, não que me lembrasse disso, mas porque o desgaste da tinta mo recordou, não contive as lágrimas não-sei-de-quê, que rolavam estupidamente, saíam-me dos olhos, desciam-me pelo queixo e morriam-me no pescoço.

“Porque te martirizas assim?” – perguntou-me. “Porque preciso de ver.” - respondi-lhe eu, não verbalmente, automaticamente. Parei diante da porta principal e fitei o chão cimentado, demoradamente. Como que acto reflexo, empurrei a porta de madeira, à minha direita, que dava para o jardim, para o forno de cozer a broa, para o velho lava-loiça de mármore, para o tanque, para o pedestal de alecrim. O jardim não é agora mais que uma intransponível montanha de silvas, do forno não restavam senão as paredes que ainda conservavam, incredulamente, um branco caiado. Não vi nenhum lava-loiça, nem o tanque, nem o alecrim, como se tivessem sido apenas partes do cenário de um sonho que eu tive e jamais tivessem existido nesta realidade. Vi, apenas, um prato branco esquecido no chão.

Sem poder transpor, mas apenas entrever o jardim que tinha sido meu e tão diferente, sem poder empurrar a porta para aquele pequeno paraíso-criança mais do que um olho pudesse espreitar, dirigi-me, mais uma vez sem pensar, como se fosse ainda a menina do vestido amarelo, até à adega. Não há palavras em dicionário algum que possam descrever o meu espanto perante aquele cenário. A porta da adega estava aberta e não pude deixar de pensar em como me parecia tão maior quando era catraia. O caos, o lixo amontoado, o nada que restara, a certeza de outras presenças por ali deram-me vontade de fugir daquele sítio, que um dia me tinha sido tão querido.

Olhei para trás à procura das andorinhas de barro pintado que estavam penduradas na parede da casa, ao lado da porta de entrada, mas elas não estavam. Não me lembro de alguma vez ter reparado no Santo António que está mesmo por cima da porta, a segurar o Menino, como tu me seguravas. A medo estendi a mão para a porta gasta, senti-lhe as rugas de outros tempos, quase a mesma alegria com que sempre entrava por ali, num furacão de risos. Empurrei-a e a porta cedeu o suficiente para que eu pudesse reconhecer, lá bem ao longe, no fundo dos destroços, o papel de parede com um padrão em tons de laranja. Como é possível ter-me esquecido dele? E onde estaria o Fiel, o cão de loiça que a vó velha sempre disse que haveria de ser meu? Debaixo dos destroços, com certeza, quebrado em puzzle impossível de terminar. Afinal os cães de loiça também têm o seu prazo de vida e o do Fiel, para dálmata e loiça, foi bastante bom. De olhar desperto procurei aquilo que era a cozinha, as escadas para o andar de cima, tentei reconhecer o sofá da sala e o cadeirão branco, de palhinha. Nada. Para onde teriam levado tudo?

Virei costas, desoladas, por não reconhecer aquela casa, por ser apenas e vagamente parecida com a casa da vó velha da minha infância. Voltei a olhar a fachada rosa e alta Já nem me lembrava daquelas janelas pequeninas nos andares superiores. Ainda tinham as cortinas de renda branca. A parede conservava, teimosa, o painel de azulejos, azul e branco, lá no alto, com a imagem do Santo António. Intacto. Escapou-me um sorriso por entre as lágrimas quando vi uma menina de tranças loiras, a espreitar pela janela do topo, com os seus olhos-girassóis. Ainda é a tua casa, vó velha. Já me lembro. Vejo-te no fogão a fazer sopa de legumes, poiso o açucareiro bojudo com a estampa de um gato preto na mesa redonda, subo as escadas até ao teu quarto e espreito, pela centésima terceira vez o vestido de casamento da avó, subo mais um andar e ponho-me à janela, sentada numa cadeirinha baixa, à espera que venhas contar-me, mais uma vez, a história da velha e da cabaça.

Fechei os olhos e só os abri quando já só via a saída do beco estreito. Quero deitar fora a imagem dos destroços de agora para, no lugar dela, colar a imagem da casa tosca e rosa da vó velha, da minha infância, que um dia quis para mim.

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