sexta-feira, 17 de janeiro de 2014


As três janelas grandes, meu desafio matinal. Içava-lhes as persianas como pesadas velas, zelosa timoneira de um navio feito de livros. E se não era o sol, eram a torre e a velha cabra quem enchiam de luz a nau do conhecimento. Iluminavam-se as longas mesas de madeira, acervo de cílios tantos, e as cadeiras pesadas e desconfortáveis dos ‘filhos da pauta’. Refulgiam em esplendor todas as estantes em redor, reforço positivo de todas as quatro paredes, do chão até lá acima, às prateleiras do Olimpo! Abriam-se em luz as lombadas douradas, de Álcman a Virgílio, de Apício a Teócrito, de Cícero a Safo, de Aristófanes a Plauto, de Marcial a Plutarco, de Apuleio a Petrónio.Alvoradas de sossego, capas negras de sono! Após o almoço, a lufa-lufa dos estudantes ávidos de literatura - alguns de avidez forçada, é certo, mas muitos de clássica faísca no olhar. Fins de tarde plácidos, poemas a cada despedida do Mondego visto tão de cima!

Mas eram tantas as chaves, e tantas as portas, corredores e gabinetes, depósitos de livros-tesouro e a experiência da revisitação de tudo no trilho encetado do saber. E eram tantas as perguntas, e tantas as requisições, e os papéis e os cartões - ‘Faça o favor de descer à biblioteca do segundo piso para magnetizar o cartão!’. E eram os lentes que conhecia de antes, que admirava de sempre, de uma antiguidade que não é toda minha, mas sei-os. Sei-lhes a delicadeza e o tacto, sei-lhes o querer e a procura. Conheço-lhes, sobretudo, o bom humor, a piada real e sentida, o riso genuíno e aberto. Mas eram tantas as cartas e tanta a noção de responsabilidade e maior o medo de falhar, de não chegar. Mas foi tanto o amor que pus em cada toque de lombada, no selar de cada carta, no girar de cada chave. E a magia da comunicação feita diário-de-bordo, trabalho conjunto de companheiros esforçados! E o convívio que faz viver as línguas dos antigos! E o meu amor junto com o amor deles! Dedicações ao alto, rumando na mesma direcção.


Como me despeço agora de tudo isto? Quero cada livro, cada amigo, cada elástico que arrumei, com cuidado, na caixinha da gaveta. Quero a saudação da cabra e o Mondego fresco e as queijadas de Pereira a cada manhã! Não perco nada porque levo tudo isto dentro de mim. Porque sei agora a dor do percurso iniciático que não torna, como não torna Cronos, atrás. Porque também disto tirei aquilo que agora sou. Porque o galeão estará sempre ali, para me receber, assim dure eu, aprendiz, e o capitão, meu mestre, pedagogo que me tem trazido, pela mão, até aqui.

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