quarta-feira, 20 de maio de 2009

Caminhos


Não me parece totalmente correcto afirmar que se escolhem amigos. Certo é que não são fatais como a família, que não se escolhe, tem-se, mas parece-me que são os amigos que nos vão escolhendo ao longo da vida e é ela, a vida, que nos vai dando a oportunidade de apanhar amigos como quem apanha flores do campo. Fitam-se as flores, demoradamente, e vão-se notando defeitos naquela pétala amarelecida, pequenas falhas neste caule… Aqui se escolhem as flores mais perfeitas e se vão deixando cair as outras pelo caminho. Tudo está, afinal, relacionado com caminhos. São os trilhos que se escolhem e os momentos pausados que determinamos para cheirar esta ou aquela flor: isso sim é a única escolha passível. Direita ou esquerda, subir ou descer, preto ou branco, parar ou seguir. E seguimos, seguimos sempre. Optamos a todo o momento por isto ou aquilo, desta ou de outra maneira, de ânimo leve ou de alma carregada. Seguimos. Sem nunca deixar de pensar nas escolhas, de duvidar das azinhagas subidas, de desdenhar das flores cheiradas, de lembrar outros caminhos que eram possíveis e que, por uma razão ou outra, por causa de uma pedra no caminho, decidimos ignorar e tomar outros rumos, questionados a toda a hora.

Becos, azinhagas, ruelas, estradas, avenidas. Passamos por bastantes e diversas na nossa jornada e muitas vezes, por culpa do tiquetaque acelerado que paira sobre as nossas cabeças, esquecemo-nos de olhar as janelas e os topos dos edifícios, de admirar os jardins, as matas, os pinhais, a areia das praias, de parar para escutar, por um segundo, a cidade em silêncio, de pasmar perante um céu negro, negro e estrelado e ficar horas a contar as estrelas e a descobrir constelações em nós mesmos. Vias cruzadas, certas ou erradas, desfrutemos delas, cheiremos, paremos para escutar. Há sempre um caminho de volta.

segunda-feira, 18 de maio de 2009

«Vencidos da Vida»


Hoje é corriqueiro passarmos na rua e vermos vários cartazes alusivos a cursos profissionais, muitos deles agora nas escolas públicas, que permitem ao aluno optar por uma formação especializada na área que pretende. Ainda ontem passei por um cartaz que dizia qualquer coisa do tipo “há muitas profissões dentro da tua escola” e que me fez imediatamente relembrar os meus tempos de miúda. Na altura, um miúdo chegava ao nono ano de escolaridade e podia usufruir dos denominados “testes psicotécnicos”, que nos davam respostas bastante vagas acerca da nossa vocação futura. No meu caso, por exemplo, lembro-me de que a grande conclusão de todos aqueles testes revelava a minha capacidade para lidar com pessoas. Mas que raio é isso de “lidar com pessoas”? Eu lido com pessoas todos os dias. Se o não fizesse seria muito mau sinal. Não? E em termos de profissões que impliquem “lidar com pessoas”, não consigo lembrar-me de muitas em que não seja preciso fazê-lo. Nesse tempo interpretei essa resposta como um indicador de que a minha escolha estava certa: queria seguir humanidades, estudar história e literatura, aprender o fascínio das línguas e culturas. E assim o fiz.

Não quero com isto dizer que não houvesse já qualquer tipo de ensino mais específico e direccionado para determinada área. Não era apenas tão divulgado e, não sei porque carga de água, era sinónimo de “incapacidade para fazer o que deveria ser feito”. Havia uma voz pesada que nos indicava o caminho a seguir: escolher uma determinada área no ensino secundário, que se reduzia a Ciências, Artes, Economia e Humanidades, e seguir, posteriormente para a universidade. Hoje volto a pensar naquele cartaz e naquilo que nos era dito. Muitos de nós, já com canudos na mão ou perto disso, olhamos para aqueles de quem escarnecíamos e vemo-nos perdidos, sem trabalho porque a nossa formação, embora custosa, não é aquela que é precisa neste momento. Somos a geração desiludida, enganada pela ideia de que um canudo nos daria segurança e estabilidade para começar uma “vida de adulto” e somos, afinal, a segunda geração de “Vencidos da Vida”.

quarta-feira, 13 de maio de 2009

O Fulaninho de Cartago

Mais uma vez o Thíasos surpreendeu pela positiva na abertura do XI Festival Internacional de Teatro de Tema Clássico, com a magnífica peça O Fulaninho de Cartago, de Plauto, apresentada com a nova tradução, sempre mais coloquial e acessível, do professor José Luís Brandão, também seu encenador.

Foi desta que convenci um velho amigo a juntar-se a nós para ver a peça. Nessa noite, o espaço em frente ao Teatro Paulo Quintela, que me pareceu sempre bastante amplo, estava coberto por um mar de gente que queria mesmo ver Plauto. Não eram só os grandes professores da área de clássicas, mas gente de todas as áreas e de todas as idades. Depois do tempo de espera para entrar, nada de especial embora anormal para o costume, a desilusão de já não haver um daqueles livrinhos com os trechos da peça… Apesar de termos conseguido chegar a horas, sentámo-nos nas filas de trás. E fez-se silêncio.

No palco apareceu o caríssimo professor Delfim Leão, fazendo alguns agradecimentos e fornecendo ao público as linhas gerais da peça e do seu contexto histórico. Aqueles gestos, o tom de voz, trouxeram-me imediatamente à memória as saudosas manhãs de aulas de Cultura Clássica. Quanto aprendemos com ele! Descontraído, correu para fechar as cortinas da entrada grande sala e desapareceu por entre as cortinas do palco.

As luzes acendem-se e destacam-se as entradas de um lupanar e de uma casa das redondezas. Do lupanar sai uma jovem que, servindo de coro, nos canta as aventuras de Agorásteles, o rapaz que havia sido raptado de Creta juntamente com as suas primas. Fora adoptado por um velho misógino de Cálidon, na Etólia, do qual herdou todos os bens. Encontramo-lo agora apaixonado por Adelfásio, futura meretriz no lupanar de Lico, o Alcoviteiro a quem Agorástocles pretende dar uma lição. É o dia das afrodísias, a festa de Vénus. Lico, Carlos Jesus, entra em cena e encontra Antaménides, o soldado romano fanfarrão, a personagem-tipo que adora contar as suas façanhas fantasiadas, aqui interpretado por Delfim Leão, que nos brinda com uma sessão tão cómica e com tamanha convicção ao contar como matou os homens-voadores, que o público lhe responde com sentidas gargalhadas.

Mais tarde, Agorástocles alia-se ao seu escravo, Milfião, e ao seu caseiro, Colibisco, juntando um grupo de testemunhas para enganar o alcoviteiro. Entretanto, para surpresa de todos, surge Hanão, Joasé Luís Brandão, um cartaginês que é, afinal, o tio de Agorástocles e que descobre que as suas filhas são Anterástilis e Adelfásio. Estas são, finalmente, salvas e voltam para a companhia do pai. De destacar, também, o papel de José Luís Brandão e o magnífico sotaque que usou para fazer de cartaginês. Agorástocles fica com a sua apaixonada prima Adelfásio e Lico fica entregue a Antaménides.

Mais um momento bem passado. O XI Festival Internacional de Teatro de Tema Clássico dura até Julho e aqui fica o programa: http://www.uc.pt/fluc/eclassicos/teatro/11festival

sábado, 2 de maio de 2009

Era vital, Moreira

Não se fala de outra coisa senão da grande inquietação que aconteceu no 1º de Maio, em Lisboa, com o senhor Vital Moreira, distinto professor que agora apenas conheço por passar várias vezes à porta da minha faculdade. Pelo que vi no telejornal e pelo pouco que consegui ler na Internet, Vital Moreira foi apupado e mesmo agredido durante a marcha comemorativa do Dia do Trabalhador. É realmente vergonhoso terem insultado desta forma o candidato às europeias pelo Partido Socialista. Já algo de parecido se teria passado com Mário Soares na Marinha Grande, tal como Vital Moreira fez questão de recordar. E prontificou-se, também, a acusar apoiantes do Partido Comunista Português de tal acontecimento. Tem lógica que, tendo o senhor abandonado a militância deste partido há vinte anos atrás, haja quem ainda o considere um “traidor”, como lhe chamaram.

Pausa para pensar.

Imaginando que o professor Vital Moreira nunca tenha tido qualquer tipo de relação com outro partido senão o que agora representa, será que iria ser bem recebido pelos manifestantes da classe trabalhadora, sendo ele representante do partido que, por coincidência, é aquele que governa estes mesmos trabalhadores e contra o qual eles se insurgem? Não me parece. Curioso é tentar recordar-me de uma outra marcha do 1º de Maio em que ele tivesse estado presente desde que tenho consciência do que isso representa. Mais curioso ainda é recordar-me de que, há pouco mais de vinte anos atrás, quando eu o conheci, ele insistia sempre com a minha vó velha, na altura das eleições, para votar bem, o que na altura para ele significava “fazer uma cruzinha” onde dissesse PCP. Não quero com isto dizer que as pessoas não possam mudar de opinião com toda a legitimidade, não sendo obrigadas, como ele próprio disse, a militar num partido cujos ideais já não se coadunavam com os dele. Contudo, aparecer numa manifestação da CGTP um membro representante do partido pelo qual o povo já perdeu toda a credibilidade parece uma atitude um tanto ou quanto provocatória. Felizmente para ele que ainda não chegou cá a moda de atirar sapatos, até porque o português é suficientemente esperto ao ponto de pensar no dinheiro que iria gastar num novo par de sapatos. Pensando, por outro lado, na máxima que diz que até a má publicidade é publicidade, até acabou por ser porreiro, não te parece, pá? Vê lá, não façam agora de ti um mártir.

É a revolta do povo. Era vital, Moreira…

sexta-feira, 1 de maio de 2009

sorrisos, lágrimas e capas negras


Viver Coimbra é quase como escrever um poema, lentamente, ao ritmo das águas calmas do Mondego. Chegado Maio, parecem revoltas as águas do rio e os estudantes-morcego saem à noite para ver a Serenata Monumental, a abertura solene das grandes festividades estudantis e, acima de tudo, um momento repetido anualmente que sabe sempre a alguma coisa de novo e especial, como um doce-amargo que nos fica na boca.

Ser estudante de Coimbra não se define irredutivelmente como um dia o fez o comentador-por-excelência, Miguel SousaTavares. Disse qualquer coisa parecida com o estudante de Coimbra ser um mero bêbado que se interessa somente pelas festas “de arromba” que por aqui se fazem, pondo de parte o estudo. Terá tido o senhor MST o privilégio de estudar em Coimbra? Aposto que se terá esquecido de que, durante o semestre, passamos o tempo nos bancos desconfortáveis da faculdade, “queimamos as pestanas” sob a luz fosca dos candeeiros da Biblioteca Geral, carregamos as pastas negras atulhadas de apontamentos importantíssimos, derretemos dinheiro em fotocópias e em canetas fluorescentes que deslizam sobre palavras-chave, chegamos a casa cansados e preparamos as aulas do dia seguinte para tentar cair nas boas graças do professor. E ninguém é santo! Pelo menos que eu conheça… Fazemos gazeta, sim senhor. Às vezes apetece-nos ficar na cama porque abusámos na noite anterior, outras vezes apenas porque precisamos de estudar um pouco mais para outra coisa qualquer. Somos molengões e preguiçosos, adormecemos nas aulas e fazemos cábulas, quando não tiramos apontamentos somos uns cravas, estamos sempre prontos para convívios e mais um copo que venha. Odiamos a “cabra” e, no entanto, não conseguimos tirar os olhos dela, sempre lenta durante as aulas, tão veloz em dias de festa! Enquanto Maio vai chegando nos calendários, arejam-se capas, limpam-se os sapatos, compram-se cartolas e bengalas, os caloiros anseiam por vestir o traje pela primeira vez e é na serenata que desabrocham, quais tulipas negras.

Este ano tive o privilégio de assistir à Serenata Monumental de uma localização privilegiada. Eu, que sou pequenina, vi tudo de cima e os estudantes pareciam um amontoado de minúsculas pintas pretas que iam formando um manto negro que cobria toda a Sé Velha. Olhava aquele mar de gente com uma vontade enorme de saltar pela janela como se pudesse sobrevoá-los. Pela casa fazia-se sangria, dispunham-se as entradas para o jantar, punha-se música, bebia-se vodka ucraniana, houve quem fosse fazer a barba… Comeu-se muito, bebeu-se mais ainda. À meia-noite em ponto estávamos à janela para ver traçar as capas e ouvir o choro da guitarra. Percebi as tuas lágrimas quando te enrolaste na tua capa e deixei-me estar quieta a ouvir a balada da despedida, saboreando aquele momento agri-doce que dá vontade de guardar para sempre. E mais do que as nossas tolices, mais do que a cerveja e o vinho, são os vossos sorrisos que aquecem, as palavras meigas embargadas pelo álcool e pela comoção, são as capas negras que esvoaçam e se rasgam em sinal de amizade, são os abraços trocados e os brindes a futuros auspiciosos que fazem tudo isto valer a pena. Noites que recordaremos quando formos muito velhinhos, teremos saudade, cobriremos o nosso corpo vergado com a velha capa negra pensando em como deveríamos ter abusado um pouquinho mais.

«A ponte sobre o i»

«Coimbra é uma palavra que se escreve
com amigos a partir em cada letra.
Diz-se Coimbra e é o Largo da Portagem
a ponte sobre o i as claras sílabas
do Mondego correndo e o outro lado
da metáfora onde fica Santa Clara.

Diz-se Coimbra e é o Arco de Almedina
sobe-se a estrofe e sabe a mouraria
há uma guitarra abstracta e pedra a pedra
mais que cidade Coimbra é um teorema.

Quando se chega ao Largo da Sé Velha
começa devagar a ser poema. »


Manuel Alegre
in Coimbra Nunca Vista