sábado, 25 de abril de 2009

O que diz um cravo


Não conheço palavras melhores nem mais claras que as que Ary dos Santos nos deixou sobre a Revolução dos Cravos. É certo que o poema é extenso e, à primeira vista, poderá parecer enfadonho, mas não há nada de mais verdadeiro e belo e sentido. Como é bom ouvi-lo recitar, nas gravações que ficaram, com a sua voz inflamada de “poeta nunca castrado”.

«Sabes lá o que isso foi!», dizem-me novos e velhos, por acharem que quem não viveu aquele tempo nunca poderá sequer sentir a breve emoção de pôr um cravo na lapela. Há trinta e cinco anos atrás ainda eu não era pensada. Talvez tenha sido apenas um augúrio de uma avó velha. Curvo-me perante a evidência de não conhecer com a mesma certeza o sabor que tem a liberdade, sei que o que os livros da escola nos dizem sobre o assunto não basta para estremecer ao ouvir o Grândola trauteado, admito a ignorância de um sentir tão forte. Mas os cravos que seguramos têm o mesmo odor e a mesma vermelhidão dos de 74, seguramo-los pela mesma razão de um não querer nunca deixar esquecer as portas que se abriram, apertamos nas mãos o caule das flores rubras e robustas com a mesma força e vontade com que os capitães e soldados apertavam as suas espingardas.

Aprendi mais do que os livros da escola nos quiseram ensinar. Surripiava um livro do meu pai que falava sobre os tipos de tortura aplicados pela polícia política e lia-o com uma avidez curiosa e amedrontada. Certo dia, o falecido senhor José Neto, durante umas férias de verão, mostrou-nos o Forte de Peniche onde tinha estado preso e explicou-me, com o mesmo rigor com que mediu a curiosidade dos meus olhos, todas as atrocidades por que tinha passado ali dentro, nos vários compartimentos frios onde batia a maresia que os fazia sonhar com liberdade. Teria eu os meus dez anos. Foi pouco mais tarde que a avó conseguiu recuperar uma jóia de família, talvez a maior riqueza que possuímos, há muito perdida em casa de quem não lhe soube dar o devido valor: um livrinho comprido e estreito, amarelecido pelo tempo, com uma capa tosca feita com um pedaço da farda do meu bisavô Aníbal, preso político no Forte da Graça, em Elvas. Ainda olho com espanto a capa do precioso livrinho de poemas e pergunto-me como se conserva a tinta que ainda diz baixinho «23 de Maio de 1922/ Este livro pertence a Aníbal da Silva/ morador no logar do Chão do Bispo/Coimbra/» e mais baixinho ainda, sussurra: «chegada ao Forte da Graça em 23 de Setembro de 1921/ saída em 11 de Julho de 1922/ contém lindas cantigas/cansões/ motes/ etc.». Nunca o conheci e, no entanto, todos os dias as páginas azul-amarelecido me vão ensinando tanto, como se as palavras que escreveu com cuidado e a tinta com que as escreveu, que teima em não desaparecer, me fossem embalando enquanto me contam a sua história. Ler os motes que glosava como se fosse poeta experiente, «Sou homem não sou malvado/ Para o crime cometer/ Julgando que ia morrer/ Debaixo do chão izulado», são um quase sentir com ele a dor de estar no cárcere. E antes das belas cantigas, explica em mote e glosa, a sua chegada ao Forte, que ele dizia ser «sepultura de homens vivos»:

«Mote
Maldito forte da graça
Hó urrôzo pavilhão
Por galantaria matas
Homens debaixo do chão


Quando ao forte cheguei
Avistei as galarias
Qual foi a minha alegria
Eu não sei o que pensei
Eu então imaginei
A ser filho da desgraça
Tudo quanto é mau se cá passa
O enfeliz militar
Sempre sempre a trabalhar
Maldito forte da graça


O cabo que está de dia
Logo de mim se aproximou
A escolta me aprezentou
Os artigos que eu trazia
Levaram-me à secretaria
E depois à arrecadação
Chaparam-me como um ladrão
Como se fosse um assacino
Para cumprir cruel destino
No orrôzo pavilhão


Assim que tocou a formar
Meteram-me um barril na mão
Qual foi a minha imaginação
Ao ter que água acartar
Uns cachótes bão despejar
No meio de duas cascatas
Outros bão despejar as latas
No orrôzo pavilhão
Por galantaria matas
Homens debaixo do chão


Esperando o dia e hora
De alcansar liberdade
Sofrendo com croeldade
Até sair daqui para fora
Já por mim ninguém chora
Pela amizade do coração
Por estar lonje do meu torrão
Sem me poder auciliar
E por ber aqui matar
Homens debaixo do chão»


[Nota: Todos os vocábulos do texto foram transcritos do original.]

E é por saber dele e do soldado e do capitão, e dos que como ele eram homens que sofriam na prisão, que lutavam nas colónias sem saber porque razão, que hoje ponho um cravo ao peito e sei que comemoro a liberdade. Pela a consciência que fui adquirindo, pelos valores de família que me foram transmitidos, para nunca deixar tornar memória vaga aquilo que me permite hoje, mesmo sendo mulher, estar sentada em frente ao computador, e ter um computador (!), escrever sobre política, religião, revolução, amor… aquilo que me apetecer. Posso sair à rua na noite de 24 de Abril, como saíram os corajosos semeadores de cravos, e cantar bem de dentro “o Grândola” com mais de mil vozes comigo, enquanto arde o fascismo-boneco-de-palha, de cartola e casaco negro, mais custosamente a cada ano que passa. Grito com todos e a plenos pulmões «25 de Abril sempre» porque sei que as portas que Abril abriu estão a ser forçadas por quem quer tirar de novo ao povo “a paz/ o pão/ habitação/ saúde/ educação” que já eram nossas, e grito ainda mais alto com a mesma certeza com que sonhava com a liberdade o bisavô: «Somos muitos, muitos mil, para continuar Abril»! Porque a voz que grita o poder de um povo não deixará que roubem de novo aquilo por que tanto lutaram os nossos amigos, nossos avós, nossos pais. O poder «volta à barriga da mãe/volta à barriga da terra/que em boa hora o pariu» e o povo continua a sair à rua e a mostrar a revolta num cravo rubro.

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