quarta-feira, 8 de abril de 2009

reticências


Quero gozar as letras. Olhá-las, admirá-las, tocá-las cuidadosamente, religiosamente, Tê-las nas minhas mãos cautelosas como se as letras se tivessem tornado, cada uma delas, num vaso da dinastia Ming, para depois as virar do avesso e formar palavras sem sentido, só para saber-lhes o gosto. Por experiência própria aconselho as palavras inventadas porque normalmente são doces e não têm bicho, já as palavras do léxico da realidade são frequentemente amargas e apodrecem de tanto que as gastam. Ainda assim gosto de brincar com as letras, agradam-me como o desafio de um puzzle, moldam-se como o barro e os mais ágeis oleiros são os que inventam as palavras belas que trazem sorrisos presos consigo. Há, por outro lado, oleiros com menos destreza que, caindo numa distracção, apresentam como trabalho final um prato tosco e retorcido, que mal se pode cozer, tal como há palavras difíceis de engolir, custosas de deglutir, que deixam um amargo de boca e basta pensá-las, verbalizá-las é nada.

Quando penso nas letras e lhes mexo e as transfiguro sou criança livre, sou Mia Couto tresloucado, recrio o lexical real como se o léxico fosse uma amálgama-mosaico de plasticina colorida. Que bom é ter um idioma próprio, que triste é só eu conhecer-lhe o sentido. Mais triste ainda é perceber que há palavras-amargas impossíveis de transformar em palavras-sol, por mais cores que se lhe ponha nada lhes tira a malícia intrínseca, por melhor que seja o eufemismo, a metáfora, a sinédoque. Nada.

Tanto as palavras-sol, como as palavras-amargas, assumem todo o tipo de formas e é óbvia a preferência dos falantes pelas primeiras, simplesmente porque nos transmitem algo de bom. Não retirando nunca as palavras-sol do topo das minhas preferências, admito o meu fascínio pelas palavras-amargas, pelo seu poder de se sobreporem a todas as outras e terem criado uma ditadura de trevas no mundo lexical. Exemplificando: se tivermos uma palavra claramente sol, como o substantivo “amigo”, e lhe juntarmos, por exemplo, um adjectivo amargo do tipo “triste”, obtemos sempre um enunciado amargo. O mesmo irá acontecer, por exemplo, com um verbo e um advérbio, como “sorrir desoladamente”. Nunca tinha pensado nisto. Mas há, obviamente, excepções, como qualquer regra tem para ser confirmada. Se eu pensar no verbo “rir” e no substantivo/adjectivo “miserável”, posso fazer, pelo menos, dois tipos de enunciados com sentidos opostos: “rir para um miserável” ou “rir de um miserável”. Acho que isto depende da regência do verbo.

No fim de contas, nem era isto que eu queria dizer. Acho que tinha começado a escrever acerca do facto de gozar as palavras por outra razão completamente diferente. Prendi-me nas palavras como me prendi no contorno leve da tua sombra posta no chão, perdi-me por entre as reticências que vais deixando, que são espaço abertos para eu preencher com palavras minhas, para os outros preencherem com palavras deles. É kafkiano e a dúvida é desassossego. Ainda não inventei palavras para os intervalos das tuas reticências. Ou sou má oleira ou o alfabeto tem poucas letras para as palavras que já gastei.

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