sábado, 25 de abril de 2009

O que diz um cravo


Não conheço palavras melhores nem mais claras que as que Ary dos Santos nos deixou sobre a Revolução dos Cravos. É certo que o poema é extenso e, à primeira vista, poderá parecer enfadonho, mas não há nada de mais verdadeiro e belo e sentido. Como é bom ouvi-lo recitar, nas gravações que ficaram, com a sua voz inflamada de “poeta nunca castrado”.

«Sabes lá o que isso foi!», dizem-me novos e velhos, por acharem que quem não viveu aquele tempo nunca poderá sequer sentir a breve emoção de pôr um cravo na lapela. Há trinta e cinco anos atrás ainda eu não era pensada. Talvez tenha sido apenas um augúrio de uma avó velha. Curvo-me perante a evidência de não conhecer com a mesma certeza o sabor que tem a liberdade, sei que o que os livros da escola nos dizem sobre o assunto não basta para estremecer ao ouvir o Grândola trauteado, admito a ignorância de um sentir tão forte. Mas os cravos que seguramos têm o mesmo odor e a mesma vermelhidão dos de 74, seguramo-los pela mesma razão de um não querer nunca deixar esquecer as portas que se abriram, apertamos nas mãos o caule das flores rubras e robustas com a mesma força e vontade com que os capitães e soldados apertavam as suas espingardas.

Aprendi mais do que os livros da escola nos quiseram ensinar. Surripiava um livro do meu pai que falava sobre os tipos de tortura aplicados pela polícia política e lia-o com uma avidez curiosa e amedrontada. Certo dia, o falecido senhor José Neto, durante umas férias de verão, mostrou-nos o Forte de Peniche onde tinha estado preso e explicou-me, com o mesmo rigor com que mediu a curiosidade dos meus olhos, todas as atrocidades por que tinha passado ali dentro, nos vários compartimentos frios onde batia a maresia que os fazia sonhar com liberdade. Teria eu os meus dez anos. Foi pouco mais tarde que a avó conseguiu recuperar uma jóia de família, talvez a maior riqueza que possuímos, há muito perdida em casa de quem não lhe soube dar o devido valor: um livrinho comprido e estreito, amarelecido pelo tempo, com uma capa tosca feita com um pedaço da farda do meu bisavô Aníbal, preso político no Forte da Graça, em Elvas. Ainda olho com espanto a capa do precioso livrinho de poemas e pergunto-me como se conserva a tinta que ainda diz baixinho «23 de Maio de 1922/ Este livro pertence a Aníbal da Silva/ morador no logar do Chão do Bispo/Coimbra/» e mais baixinho ainda, sussurra: «chegada ao Forte da Graça em 23 de Setembro de 1921/ saída em 11 de Julho de 1922/ contém lindas cantigas/cansões/ motes/ etc.». Nunca o conheci e, no entanto, todos os dias as páginas azul-amarelecido me vão ensinando tanto, como se as palavras que escreveu com cuidado e a tinta com que as escreveu, que teima em não desaparecer, me fossem embalando enquanto me contam a sua história. Ler os motes que glosava como se fosse poeta experiente, «Sou homem não sou malvado/ Para o crime cometer/ Julgando que ia morrer/ Debaixo do chão izulado», são um quase sentir com ele a dor de estar no cárcere. E antes das belas cantigas, explica em mote e glosa, a sua chegada ao Forte, que ele dizia ser «sepultura de homens vivos»:

«Mote
Maldito forte da graça
Hó urrôzo pavilhão
Por galantaria matas
Homens debaixo do chão


Quando ao forte cheguei
Avistei as galarias
Qual foi a minha alegria
Eu não sei o que pensei
Eu então imaginei
A ser filho da desgraça
Tudo quanto é mau se cá passa
O enfeliz militar
Sempre sempre a trabalhar
Maldito forte da graça


O cabo que está de dia
Logo de mim se aproximou
A escolta me aprezentou
Os artigos que eu trazia
Levaram-me à secretaria
E depois à arrecadação
Chaparam-me como um ladrão
Como se fosse um assacino
Para cumprir cruel destino
No orrôzo pavilhão


Assim que tocou a formar
Meteram-me um barril na mão
Qual foi a minha imaginação
Ao ter que água acartar
Uns cachótes bão despejar
No meio de duas cascatas
Outros bão despejar as latas
No orrôzo pavilhão
Por galantaria matas
Homens debaixo do chão


Esperando o dia e hora
De alcansar liberdade
Sofrendo com croeldade
Até sair daqui para fora
Já por mim ninguém chora
Pela amizade do coração
Por estar lonje do meu torrão
Sem me poder auciliar
E por ber aqui matar
Homens debaixo do chão»


[Nota: Todos os vocábulos do texto foram transcritos do original.]

E é por saber dele e do soldado e do capitão, e dos que como ele eram homens que sofriam na prisão, que lutavam nas colónias sem saber porque razão, que hoje ponho um cravo ao peito e sei que comemoro a liberdade. Pela a consciência que fui adquirindo, pelos valores de família que me foram transmitidos, para nunca deixar tornar memória vaga aquilo que me permite hoje, mesmo sendo mulher, estar sentada em frente ao computador, e ter um computador (!), escrever sobre política, religião, revolução, amor… aquilo que me apetecer. Posso sair à rua na noite de 24 de Abril, como saíram os corajosos semeadores de cravos, e cantar bem de dentro “o Grândola” com mais de mil vozes comigo, enquanto arde o fascismo-boneco-de-palha, de cartola e casaco negro, mais custosamente a cada ano que passa. Grito com todos e a plenos pulmões «25 de Abril sempre» porque sei que as portas que Abril abriu estão a ser forçadas por quem quer tirar de novo ao povo “a paz/ o pão/ habitação/ saúde/ educação” que já eram nossas, e grito ainda mais alto com a mesma certeza com que sonhava com a liberdade o bisavô: «Somos muitos, muitos mil, para continuar Abril»! Porque a voz que grita o poder de um povo não deixará que roubem de novo aquilo por que tanto lutaram os nossos amigos, nossos avós, nossos pais. O poder «volta à barriga da mãe/volta à barriga da terra/que em boa hora o pariu» e o povo continua a sair à rua e a mostrar a revolta num cravo rubro.

«As portas que Abril abriu»



«Era uma vez um país
onde entre o mar e a guerra
vivia o mais infeliz
dos povos à beira-terra.
Onde entre vinhas sobredos
vales socalcos searas
serras atalhos veredas
lezírias e praias claras
um povo se debruçava
como um vime de tristeza
sobre um rio onde mirava
a sua própria pobreza.

Era uma vez um país
onde o pão era contado
onde quem tinha a raiz
tinha o fruto arrecadado
onde quem tinha o dinheiro
tinha o operário algemado
onde suava o ceifeiro
que dormia com o gado
onde tossia o mineiro
em Aljustrel ajustado
onde morria primeiro
quem nascia desgraçado.


Era uma vez um país
de tal maneira explorado
pelos consórcios fabris
pelo mando acumulado
pelas ideias nazis
pelo dinheiro estragado
pelo dobrar da cerviz
pelo trabalho amarrado
que até hoje já se diz
que nos tempos do passado
se chamava esse país
Portugal suicidado.

Ali nas vinhas sobredos
vales socalcos searas
serras atalhos veredas
lezírias e praias claras
vivia um povo tão pobre
que partia para a guerra
para encher quem estava podre
de comer a sua terra.

Um povo que era levado
para Angola nos porões
um povo que era tratado
como a arma dos patrões
um povo que era obrigado
a matar por suas mãos
sem saber que um bom soldado
nunca fere os seus irmãos.

Ora passou-se porém
que dentro de um povo escravo
alguém que lhe queria bem
um dia plantou um cravo.

Era a semente da esperança
feita de força e vontade
era ainda uma criança
mas já era a liberdade.

Era já uma promessa
era a força da razão
do coração à cabeça
da cabeça ao coração.
Quem o fez era soldado
homem novo capitão
mas também tinha a seu lado
muitos homens na prisão.

Esses que tinham lutado
a defender um irmão
esses que tinham passado
o horror da solidão
esses que tinham jurado
sobre uma côdea de pão
ver o povo libertado
do terror da opressão.

Não tinham armas é certo
mas tinham toda a razão
quando um homem morre perto
tem de haver distanciação

uma pistola guardada
nas dobras da sua opção
uma bala disparada
contra a sua própria mão
e uma força perseguida
que na escolha do mais forte
faz com que a força da vida
seja maior do que a morte.

Quem o fez era soldado
homem novo capitão
mas também tinha a seu lado
muitos homens na prisão.

Posta a semente do cravo
começou a floração
do capitão ao soldado
do soldado ao capitão.

Foi então que o povo armado
percebeu qual a razão
porque o povo despojado
lhe punha as armas na mão.

Pois também ele humilhado
em sua própria grandeza
era soldado forçado
contra a pátria portuguesa.

Era preso e exilado
e no seu próprio país
muitas vezes estrangulado
pelos generais senis.

Capitão que não comanda
não pode ficar calado
é o povo que lhe manda
ser capitão revoltado
é o povo que lhe diz
que não ceda e não hesite
– pode nascer um país
do ventre duma chaimite.

Porque a força bem empregue
contra a posição contrária
nunca oprime nem persegue
– é força revolucionária!

Foi então que Abril abriu
as portas da claridade
e a nossa gente invadiu
a sua própria cidade.

Disse a primeira palavra
na madrugada serena
um poeta que cantava
o povo é quem mais ordena.

E então por vinhas sobredos
vales socalcos searas
serras atalhos veredas
lezírias e praias claras
desceram homens sem medo
marujos soldados «páras»
que não queriam o degredo
dum povo que se separa.
E chegaram à cidade
onde os monstros se acoitavam
era a hora da verdade
para as hienas que mandavam
a hora da claridade
para os sóis que despontavam
e a hora da vontade
para os homens que lutavam.

Em idas vindas esperas
encontros esquinas e praças
não se pouparam as feras
arrancaram-se as mordaças
e o povo saiu à rua
com sete pedras na mão
e uma pedra de lua
no lugar do coração.

Dizia soldado amigo
meu camarada e irmão
este povo está contigo
nascemos do mesmo chão
trazemos a mesma chama
temos a mesma ração
dormimos na mesma cama
comendo do mesmo pão.
Camarada e meu amigo
soldadinho ou capitão
este povo está contigo
a malta dá-te razão.

Foi esta força sem tiros
de antes quebrar que torcer
esta ausência de suspiros
esta fúria de viver
este mar de vozes livres
sempre a crescer a crescer
que das espingardas fez livros
para aprendermos a ler
que dos canhões fez enxadas
para lavrarmos a terra
e das balas disparadas
apenas o fim da guerra.

Foi esta força viril
de antes quebrar que torcer
que em vinte e cinco de Abril f
ez Portugal renascer.

E em Lisboa capital
dos novos mestres de Aviz
o povo de Portugal
deu o poder a quem quis.

Mesmo que tenha passado
às vezes por mãos estranhas
o poder que ali foi dado
saiu das nossas entranhas.
Saiu das vinhas sobredos
vales socalcos searas
serras atalhos veredas
lezírias e praias claras
onde um povo se curvava
como um vime de tristeza
sobre um rio onde mirava
a sua própria pobreza.

E se esse poder um dia
o quiser roubar alguém
não fica na burguesia
volta à barriga da mãe.
Volta à barriga da terra
que em boa hora o pariu
agora ninguém mais cerra
as portas que Abril abriu.

Essas portas que em Caxias
se escancararam de vez
essas janelas vazias
que se encheram outra vez
e essas celas tão frias
tão cheias de sordidez
que espreitavam como espias
todo o povo português.

Agora que já floriu
a esperança na nossa terra
as portas que Abril abriu
nunca mais ninguém as cerra.

Contra tudo o que era velho
levantado como um punho
em Maio surgiu vermelho
o cravo do mês de Junho.

Quando o povo desfilou
nas ruas em procissão
de novo se processou
a própria revolução.

Mas eram olhos as balas
abraços punhais e lanças
enamoradas as alas
dos soldados e crianças.

E o grito que foi ouvido
tantas vezes repetido
dizia que o povo unido
jamais seria vencido.

Contra tudo o que era velho
levantado como um punho
em Maio surgiu vermelho
o cravo do mês de Junho.

E então operários mineiros
pescadores e ganhões
marçanos e carpinteiros
empregados dos balcões
mulheres a dias pedreiros
reformados sem pensões
dactilógrafos carteiros
e outras muitas profissões
souberam que o seu dinheiro
era presa dos patrões.

A seu lado também estavam
jornalistas que escreviam
actores que se desdobravam
cientistas que aprendiam
poetas que estrebuchavam
cantores que não se vendiam
mas enquanto estes lutavam
é certo que não sentiam
a fome com que apertavam
os cintos dos que os ouviam.

Porém cantar é ternura
escrever constrói liberdade
e não há coisa mais pura
do que dizer a verdade.

E uns e outros irmanados
na mesma luta de ideais
ambos sectores explorados
ficaram partes iguais.

Entanto não descansavam
entre pragas e perjúrios
agulhas que se espetavam
silêncios boatos murmúrios
risinhos que se calavam
palácios contra tugúrios
fortunas que levantavam
promessas de maus augúrios
os que em vida se enterravam
por serem falsos e espúrios
maiorais da minoria
que diziam silenciosa
e que em silêncio fazia
a coisa mais horrorosa:
minar como um sinapismo
e com ordenados régios
o alvor do socialismo
e o fim dos privilégios.

Foi então se bem vos lembro
que sucedeu a vindima
quando pisámos Setembro
a verdade veio acima.

E foi um mosto tão forte
que sabia tanto a Abril
que nem o medo da morte
nos fez voltar ao redil.

Ali ficámos de pé
juntos soldados e povo
para mostrarmos como é
que se faz um país novo.

Ali dissemos não passa!
E a reacção não passou.
Quem já viveu a desgraça
odeia a quem desgraçou.

Foi a força do Outono
mais forte que a Primavera
que trouxe os homens sem dono
de que o povo estava à espera.

Foi a força dos mineiros
pescadores e ganhões
operários e carpinteiros
empregados dos balcões
mulheres a dias pedreiros
reformados sem pensões
dactilógrafos carteiros
e outras muitas profissões
que deu o poder cimeiro
a quem não queria patrões.

Desde esse dia em que todos
nós repartimos o pão
é que acabaram os bodos
— cumpriu-se a revolução.

Porém em quintas vivendas
palácios e palacetes
os generais com prebendas
caciques e cacetetes
os que montavam cavalos
para caçarem veados
os que davam dois estalos
na cara dos empregados
os que tinham bons amigos
no consórcio dos sabões
e coçavam os umbigos
como quem coça os galões
os generais subalternos
que aceitavam os patrões
os generais inimigos
os generais garanhões
teciam teias de aranha
e eram mais camaleões
que a lombriga que se amanha
com os próprios cagalhões.
Com generais desta apanha
já não há revoluções.

Por isso o onze de Março
foi um baile de Tartufos
uma alternância de terços
entre ricaços e bufos.

E tivemos de pagar
com o sangue de um soldado
o preço de já não estar
Portugal suicidado.

Fugiram como cobardes
e para terras de Espanha
os que faziam alardes
dos combates em campanha.

E aqui ficaram de pé
capitães de pedra e cal
os homens que na Guiné
aprenderam Portugal.

Os tais homens que sentiram
que um animal racional
opõe àqueles que o firam
consciência nacional.

Os tais homens que souberam
fazer a revolução
porque na guerra entenderam
o que era a libertação.

Os que viram claramente
e com os cinco sentidos
morrer tanta tanta gente
que todos ficaram vivos.

Os tais homens feitos de aço
temperado com a tristeza
que envolveram num abraço
toda a história portuguesa.

Essa história tão bonita
e depois tão maltratada
por quem herdou a desdita
da história colonizada.

Dai ao povo o que é do povo
pois o mar não tem patrões.
– Não havia estado novo
nos poemas de Camões!

Havia sim a lonjura
e uma vela desfraldada
para levar a ternura
à distância imaginada.

Foi este lado da história
que os capitães descobriram
que ficará na memória
das naus que de Abril partiram

das naves que transportaram
o nosso abraço profundo
aos povos que agora deram
novos países ao mundo.

Por saberem como é
ficaram de pedra e cal
capitães que na Guiné
descobriram Portugal.

E em sua pátria fizeram
o que deviam fazer:
ao seu povo devolveram
o que o povo tinha a haver:
Bancos seguros petróleos
que ficarão a render
ao invés dos monopólios
para o trabalho crescer.
Guindastes portos navios
e outras coisas para erguer
antenas centrais e fios
dum país que vai nascer.

Mesmo que seja com frio
é preciso é aquecer
pensar que somos um rio
que vai dar onde quiser

pensar que somos um mar
que nunca mais tem fronteiras
e havemos de navegar
de muitíssimas maneiras.

No Minho com pés de linho
no Alentejo com pão
no Ribatejo com vinho
na Beira com requeijão
e trocando agora as voltas
ao vira da produção
no Alentejo bolotas
no Algarve maçapão
vindimas no Alto Douro
tomates em Azeitão
azeite da cor do ouro
que é verde ao pé do Fundão
e fica amarelo puro
nos campos do Baleizão.
Quando a terra for do povo
o povo deita-lhe a mão!

É isto a reforma agrária
em sua própria expressão:
a maneira mais primária
de que nós temos um quinhão
da semente proletária
da nossa revolução.

Quem a fez era soldado
homem novo capitão
mas também tinha a seu lado
muitos homens na prisão.

De tudo o que Abril abriu
ainda pouco se disse
um menino que sorriu
uma porta que se abrisse
um fruto que se expandiu
um pão que se repartisse
um capitão que seguiu
o que a história lhe predisse
e entre vinhas sobredos
vales socalcos searas
serras atalhos veredas
lezírias e praias claras
um povo que levantava
sobre um rio de pobreza
a bandeira em que ondulava
a sua própria grandeza!
De tudo o que Abril abriu
ainda pouco se disse
e só nos faltava agora
que este Abril não se cumprisse.
Só nos faltava que os cães
viessem ferrar o dente
na carne dos capitães
que se arriscaram na frente.

Na frente de todos nós
povo soberano e total
que ao mesmo tempo é a voz
e o braço de Portugal.

Ouvi banqueiros fascistas
agiotas do lazer
latifundiários machistas
balofos verbos de encher
e outras coisas em istas
que não cabe dizer aqui
que aos capitães progressistas
o povo deu o poder!
E se esse poder um dia
o quiser roubar alguém
não fica na burguesia
volta à barriga da mãe!
Volta à barriga da terra
que em boa hora o pariu
agora ninguém mais cerra
as portas que Abril abriu!»


José Carlos Ary dos Santos

Lisboa, Julho-Agosto de 1975






quarta-feira, 8 de abril de 2009

Isto não é um tributo


Passam hoje quinze anos sobre a morte de Kurt Donald Cobain. Passaram já quinze anos sobre a morte do mito de toda uma geração, da dos grungers dos anos noventa. Naquele tempo não havia ipods, eu ouvia Nirvana num walkman vermelho que tornava a voz rouca e sofrida de Cobain em algo ainda mais ranfonho, ainda mais doloroso, não para os ouvidos adolescentes, mas para um interior também adolescente que se julgava tão sofrido quanto o dele.

Hoje ouço na perfeição, no meu ipod, aqueles clamores roucos, até os sussuros tímidos daquele já há muito havia partido por dentro, mas que se mostrava perfeitamente criança no comprimento louro do seu cabelo sempre desgrenhado. Morreu a oito de Abril de 1994. Oficialmente suicidou-se mas, quanto a isso há diversas teorias. O que importa realmente é saber que os miúdos continuavam a deixar crescer os cabelos de oiro até aos ombros, não deixaram de usar as velhas camisolas de malhas listradas a vermelho e preto nem de pegar nas suas guitarras para chorar as suas vidas, nuvens carregadas.

Quem se lembra dele hoje? Ou melhor, quem consegue esquecer? Aquele unplugged na MTV, cuja decoração, aos olhos de hoje, pareceria já um prenúncio, a forma como cantava Pennyroyal Tea, a maneira única de pronunciar “girl” e “the man who sold the world”, os solos da guitarra triste, o sublime e a treva em cada palavra.

Já passaram quinze anos sobre o tímido florescer da minha adolescência rebelde e ainda gosto tanto da voz de Cobain a dizer as suas palavras de dor. Já não é uma dor adolescente, é uma saudade boa da dor adolescente.

reticências


Quero gozar as letras. Olhá-las, admirá-las, tocá-las cuidadosamente, religiosamente, Tê-las nas minhas mãos cautelosas como se as letras se tivessem tornado, cada uma delas, num vaso da dinastia Ming, para depois as virar do avesso e formar palavras sem sentido, só para saber-lhes o gosto. Por experiência própria aconselho as palavras inventadas porque normalmente são doces e não têm bicho, já as palavras do léxico da realidade são frequentemente amargas e apodrecem de tanto que as gastam. Ainda assim gosto de brincar com as letras, agradam-me como o desafio de um puzzle, moldam-se como o barro e os mais ágeis oleiros são os que inventam as palavras belas que trazem sorrisos presos consigo. Há, por outro lado, oleiros com menos destreza que, caindo numa distracção, apresentam como trabalho final um prato tosco e retorcido, que mal se pode cozer, tal como há palavras difíceis de engolir, custosas de deglutir, que deixam um amargo de boca e basta pensá-las, verbalizá-las é nada.

Quando penso nas letras e lhes mexo e as transfiguro sou criança livre, sou Mia Couto tresloucado, recrio o lexical real como se o léxico fosse uma amálgama-mosaico de plasticina colorida. Que bom é ter um idioma próprio, que triste é só eu conhecer-lhe o sentido. Mais triste ainda é perceber que há palavras-amargas impossíveis de transformar em palavras-sol, por mais cores que se lhe ponha nada lhes tira a malícia intrínseca, por melhor que seja o eufemismo, a metáfora, a sinédoque. Nada.

Tanto as palavras-sol, como as palavras-amargas, assumem todo o tipo de formas e é óbvia a preferência dos falantes pelas primeiras, simplesmente porque nos transmitem algo de bom. Não retirando nunca as palavras-sol do topo das minhas preferências, admito o meu fascínio pelas palavras-amargas, pelo seu poder de se sobreporem a todas as outras e terem criado uma ditadura de trevas no mundo lexical. Exemplificando: se tivermos uma palavra claramente sol, como o substantivo “amigo”, e lhe juntarmos, por exemplo, um adjectivo amargo do tipo “triste”, obtemos sempre um enunciado amargo. O mesmo irá acontecer, por exemplo, com um verbo e um advérbio, como “sorrir desoladamente”. Nunca tinha pensado nisto. Mas há, obviamente, excepções, como qualquer regra tem para ser confirmada. Se eu pensar no verbo “rir” e no substantivo/adjectivo “miserável”, posso fazer, pelo menos, dois tipos de enunciados com sentidos opostos: “rir para um miserável” ou “rir de um miserável”. Acho que isto depende da regência do verbo.

No fim de contas, nem era isto que eu queria dizer. Acho que tinha começado a escrever acerca do facto de gozar as palavras por outra razão completamente diferente. Prendi-me nas palavras como me prendi no contorno leve da tua sombra posta no chão, perdi-me por entre as reticências que vais deixando, que são espaço abertos para eu preencher com palavras minhas, para os outros preencherem com palavras deles. É kafkiano e a dúvida é desassossego. Ainda não inventei palavras para os intervalos das tuas reticências. Ou sou má oleira ou o alfabeto tem poucas letras para as palavras que já gastei.

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«Negue-me tudo a sorte, menos vê-la,
Que eu, stóico sem dureza
Na sentença gravada do Destino
Quero gozar as letras. »
Ricardo Reis

quarta-feira, 1 de abril de 2009

dia das mentiras


«Semente, semente, semente
Semente, semente
Se não mente fale a verdade
De que árvore você nasceu?

De onde veio
De onde apareceu
Porque que o meu destino
É tão parecido com o seu?

Eu sou a terra
Você minha Semente
Na chuva a gente se entende
É na chuva que a gente se entende
Oh Semente!

Semente, Semente, Semente
Semente, Semente
Se não mente fale a verdade
De que árvore você nasceu?

Semente eu sei
Tem gente que ainda acredita
E aposta na força da vida
E busca um novo amanhecer
Lá vem o sol
Agora diga que sim
Semente eu sou sua terra
Semente pode entrar em mim...

Semente, Semente, Semente
Semente, Semente
Se nao mente fale a verdade
De que árvore você nasceu?

Se conseguir
Aquilo que você quer
E conseguir manter
A nobreza de ser quem tu é
Tenha certeza
Que vai nascer uma planta
Que a flor vai ser de esperança
De amor pro que der e vier
Oh Mulher!

Semente, Semente, Semente
Semente, Semente
Se nao mente fale a verdade
De que árvore você nasceu?

Se conseguir
Aquilo que você quer
E conseguir manter
A nobreza de ser quem tu é
Tenha certeza
Que vai nascer uma planta
Que a flor vai ser de esperança
De amor pro que der e vier
Oh Mulher!

Semente, Semente, Semente
Semente, Semente
Se nao mente fale a verdade
De que árvore você nasceu?

Semente, Semente, Semente
Semente, Semente
Não mente!»

Armandinho