Tenho diante de mim um jovem estudante. O cabelo escuro, os olhos cerrados sob o peso das grossas sobrancelhas, a sombra de uma barba adivinhada começam a desenhar um rosto de homem. É indubitavelmente mais alto do que eu, embora pareça encolhido quando sentado na cadeira sonolenta. Boceja. Cabeça sustentada na mão que se apoia no cotovelo mole, deslizante sobre a mesa. O cérebro pensante lateja e ainda assim boceja. Falo-lhe de Pessoa e do fingimento poético, conceito que ele parece absorver de imediato. Anuncio com suspense a criação da heteronímia e o entusiasmo que esperava ver materializa-se num sorriso gozão, como quem troça de um qualquer bêbado de porta de taberna. Abrevio a teoria, que se anuncia ao rapaz como um terror de infância tardia, porque um primo lhe disse que era assustador, como o papão que ainda mora debaixo da sua cama. Por vezes, quando leio uma ou outra passagem, mais emotiva ou mais inflamada, a minha voz fica trémula, embargada, e, não querendo que nenhuma sensibilidade da minha parte interfersse com o primeiro grande juízo do estudante, ouvimos a singeleza do ‘gato que brinca na rua’ na voz possante de Villaret - e nem isso lhe provocou um esgar, o mais microscópico tremelique, a menor sensação. Como posso pedir-lhe que aprecie um trecho da ‘Ode Triunfal’? Que moral me foi concedida para que o mande reconhecer a ‘dor de pensar’? Que saberá ele sobre a “raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira”? Ele que terá quê, dezoito anos? O passado ainda não lhe é suficientemente distante para que sinta por ele especial saudade. “Não é da idade,não”, sussurra-me a memória. Na inocência dos meus dezasseis anos apreciava como a uma maçã sumarenta a leitura de Pessoa no jardim. E claro que não o entendia completamente. Ainda hoje seria arrogante da minha parte dizer que o percebo já que nem ele percebia o seu próprio ‘eu’. O que interessava era o gosto com que o fazia e, só aí gosto desenvolvido, teria vontade de querer saber os pormenores rebuscados das teorias que alguém foi inventando para a genialidade de uma pessoa que era tantas. Não és tu tantos, também, tantas vezes? Deixa-o bocejar. Não é isso que me incomoda. Tantas vezes bocejei eu nas aulas de estudos pessoanos, embalada na voz grave do respeitável lente, e sabia-me tão bem. Era um bocejar feito do mais puro deleite e de aborrecimento tinha muito pouco. Aceito que haja pessoas que Pessoa não toca, mas acredito, secretamente, que isso ainda se cura com um cházinho, pelo menos até determinada idade.
1 comentário:
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