Ontem trajei pela última vez.
Primeiro fui procurar a velha capa que se encolhia, com medo das traças, no fundo do armário. Olhei-a de um lado e do outro, como se estivesse a vê-la pela primeira vez. Revi os símbolos um a um e recordei a razão pela qual cada um deles lá estava, cuidadosamente cosido no sítio certo. Olhei para os rasgos à direita e sabia identificar a que amigo pertencia cada tirinha, em que circunstâncias pedi que mo fizesse e foi aí que me desolei ao aperceber-me de que o lado esquerdo da capa estava intacto, nem um rasgo. Depois, com cuidado, tirei a cruzeta que segurava o traje. E lá estava ele, impecável. Pareceu-me, nesse dia, o mais belo fato do mundo! Devagarinho fui “descascando” a cruzeta: primeiro a gravata, depois o casaco, o colete, a camisa e a saia. Dispus as peças sobre a cama larga da minha mãe e sorri para elas, companheiras de uma viagem que estava a chegar ao fim. Foi a primeira vez que usei aqueles collants pretos, de senhora viúva, sem dar conta das picadinhas do nylon e foi também a primeira vez que ninguém me ouviu queixar dos sapatos de salto grosso.
Era já fim da tarde e estava calor. Peguei na capa sem jeito, a fazenda grossa pesava-me nas mãos. Encontrámo-nos junto a Safo, que todos os dias nos piscava o olho quando passávamos junto a ela, na pressa de uma aula. Foram chegando os amigos de sempre e a família próxima enquanto nós, em amena conversa e sem o sabermos, nos íamos despedindo do que foi. Ao cair da noite as tesouras começaram a brilhar por entre as sombras. As mães aproximaram-se de nós e foi solene o momento em que nos cortaram as gravatas, com uma ânsia de nos libertar da meninice, com o sonho de nos ver subitamente transformadas em mulheres, com aquele sorriso de dever cumprido, com os olhos brilhantes de mãe. A partir daí foi ver-nos a nós ansiosas por rasgar o passado num brinde ao futuro, e o barulho dos rasgões no tecido sabiam a liberdade, e quem nos ouvia sentia, nos gritos histéricos e nas gargalhadas fortes, a tristeza de uma despedida e a vontade de viver novos tempos, outras histórias. Mas mais fortes que as nossas gargalhadas eram as das famílias, que se divertiram tanto ou mais que nós, que sentiram o nosso sentir, que viveram esta experiência como se fosse deles também. E foi. Afinal foram eles os maiores fãs do nosso sucesso, o ombro de carpir as mágoas, a força maior que nos fazia acreditar que era possível vencer esta etapa.
Vencemos juntas. E pensam os demais: “Vencer é um verbo demasiado forte.” Não, não é. Mais uma vez reitero a minha opinião: ser estudante de Coimbra não é (só) ser um bêbado das tascas. Levantávamo-nos cedo para ir para as aulas, sempre com um sorriso na cara, arrombávamos os orçamentos lá de casa a comprar pilhas de livros que serviam, depois, para queimarmos as pestanas até às tantas da manhã a lê-los, quando a noite não era passada em branco a fazer algum trabalho. Passámos por cima de tudo isso, sobrevivemos às directas, aos nervos dos exames, ao pânico de uma apresentação oral. Nada teria sido possível sem aqueles que, além de colegas, também são amigos, o que não é fácil de encontrar por aí nos dias que correm. Eu nunca sobreviveria a uma maratona destas, amigos, sem as vossas piadas matinais, sem as maluqueiras habituais, sem os dedos nos olhos e as simulações de vómito, sem os comentários jocosos que tecíamos sobre tudo e todos (espírito crítico), sem as noitadas juntos e, sobretudo, nada disto teria sido possível sem os vossos sorrisos, as vossas palavras de incentivo, a ajuda incondicional e a confiança para chamar à razão quem a estivesse a perder.
Nessa noite jantámos juntos e juntos seguimos para o bar de sempre, como um regresso ao ventre materno, para uma última noite assim. E digo assim porque não haverá noite como aquela, outras virão e serão igualmente ou ainda mais especiais, mas nunca como aquela. Quatro raparigas rasgadas ao balcão do bar, quatro copos de um licor azul, para sempre a cor da nossa viagem. Muitos brindes se seguiram. A nós, aos que gostam de nós, ao sucesso, à felicidade, ao futuro. Já nas graças de Diónisos, falámos, recordámos muito, as aulas, os lentes, o percurso de um e de outro, rimo-nos muito, dançámos descalças, fizemos as maluqueiras de sempre. E a noite foi animada, acabou animada.
Chegada a casa, tirei os trapos, deitei-me na cama e Orfeu abraçou-me até o sol estar a pique. No dia seguinte, guardei todo e qualquer trapinho, cuidadosamente, dentro de um saco. E não tive mágoa.
Primeiro fui procurar a velha capa que se encolhia, com medo das traças, no fundo do armário. Olhei-a de um lado e do outro, como se estivesse a vê-la pela primeira vez. Revi os símbolos um a um e recordei a razão pela qual cada um deles lá estava, cuidadosamente cosido no sítio certo. Olhei para os rasgos à direita e sabia identificar a que amigo pertencia cada tirinha, em que circunstâncias pedi que mo fizesse e foi aí que me desolei ao aperceber-me de que o lado esquerdo da capa estava intacto, nem um rasgo. Depois, com cuidado, tirei a cruzeta que segurava o traje. E lá estava ele, impecável. Pareceu-me, nesse dia, o mais belo fato do mundo! Devagarinho fui “descascando” a cruzeta: primeiro a gravata, depois o casaco, o colete, a camisa e a saia. Dispus as peças sobre a cama larga da minha mãe e sorri para elas, companheiras de uma viagem que estava a chegar ao fim. Foi a primeira vez que usei aqueles collants pretos, de senhora viúva, sem dar conta das picadinhas do nylon e foi também a primeira vez que ninguém me ouviu queixar dos sapatos de salto grosso.
Era já fim da tarde e estava calor. Peguei na capa sem jeito, a fazenda grossa pesava-me nas mãos. Encontrámo-nos junto a Safo, que todos os dias nos piscava o olho quando passávamos junto a ela, na pressa de uma aula. Foram chegando os amigos de sempre e a família próxima enquanto nós, em amena conversa e sem o sabermos, nos íamos despedindo do que foi. Ao cair da noite as tesouras começaram a brilhar por entre as sombras. As mães aproximaram-se de nós e foi solene o momento em que nos cortaram as gravatas, com uma ânsia de nos libertar da meninice, com o sonho de nos ver subitamente transformadas em mulheres, com aquele sorriso de dever cumprido, com os olhos brilhantes de mãe. A partir daí foi ver-nos a nós ansiosas por rasgar o passado num brinde ao futuro, e o barulho dos rasgões no tecido sabiam a liberdade, e quem nos ouvia sentia, nos gritos histéricos e nas gargalhadas fortes, a tristeza de uma despedida e a vontade de viver novos tempos, outras histórias. Mas mais fortes que as nossas gargalhadas eram as das famílias, que se divertiram tanto ou mais que nós, que sentiram o nosso sentir, que viveram esta experiência como se fosse deles também. E foi. Afinal foram eles os maiores fãs do nosso sucesso, o ombro de carpir as mágoas, a força maior que nos fazia acreditar que era possível vencer esta etapa.
Vencemos juntas. E pensam os demais: “Vencer é um verbo demasiado forte.” Não, não é. Mais uma vez reitero a minha opinião: ser estudante de Coimbra não é (só) ser um bêbado das tascas. Levantávamo-nos cedo para ir para as aulas, sempre com um sorriso na cara, arrombávamos os orçamentos lá de casa a comprar pilhas de livros que serviam, depois, para queimarmos as pestanas até às tantas da manhã a lê-los, quando a noite não era passada em branco a fazer algum trabalho. Passámos por cima de tudo isso, sobrevivemos às directas, aos nervos dos exames, ao pânico de uma apresentação oral. Nada teria sido possível sem aqueles que, além de colegas, também são amigos, o que não é fácil de encontrar por aí nos dias que correm. Eu nunca sobreviveria a uma maratona destas, amigos, sem as vossas piadas matinais, sem as maluqueiras habituais, sem os dedos nos olhos e as simulações de vómito, sem os comentários jocosos que tecíamos sobre tudo e todos (espírito crítico), sem as noitadas juntos e, sobretudo, nada disto teria sido possível sem os vossos sorrisos, as vossas palavras de incentivo, a ajuda incondicional e a confiança para chamar à razão quem a estivesse a perder.
Nessa noite jantámos juntos e juntos seguimos para o bar de sempre, como um regresso ao ventre materno, para uma última noite assim. E digo assim porque não haverá noite como aquela, outras virão e serão igualmente ou ainda mais especiais, mas nunca como aquela. Quatro raparigas rasgadas ao balcão do bar, quatro copos de um licor azul, para sempre a cor da nossa viagem. Muitos brindes se seguiram. A nós, aos que gostam de nós, ao sucesso, à felicidade, ao futuro. Já nas graças de Diónisos, falámos, recordámos muito, as aulas, os lentes, o percurso de um e de outro, rimo-nos muito, dançámos descalças, fizemos as maluqueiras de sempre. E a noite foi animada, acabou animada.
Chegada a casa, tirei os trapos, deitei-me na cama e Orfeu abraçou-me até o sol estar a pique. No dia seguinte, guardei todo e qualquer trapinho, cuidadosamente, dentro de um saco. E não tive mágoa.
3 comentários:
Por favor Joaninha, continua a escrever...É um prazer ler-te!!!
Que bom ouvir um comentário de quem sabe ;)
ouvir = ler :P
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