Não escrevia mesmo há muito tempo. Já lá vão quase dois anos… Antes, quando a vida era tal como eu a conhecia e eu a espreitava por um caleidoscópio colorido, gostava de escrever. Escrever só por escrever, «palavrar», brincar com as frases sem ter consciência dos sentimentos intrínsecos em cada palavra, cuspir no papel o que me agradava, ou incomodava e, depois, ir viver, despreocupada. Neste entretanto fui escrevendo, certa de que aquilo não era escrever, era redigir. Sim, entretanto fui redigindo uns textos, por obrigação, única e exclusivamente: alguns comentários críticos sobre certos filmes, um trabalho interessantíssimo acerca da misteriosa existência da bela Helena, tive, ainda, oportunidade de dar a conhecer a minha paixão pelas subculturas no Japão. Mas nada disso me satisfez verdadeiramente. É certo que me dediquei a cada um desses textos, mas mentiria se dissesse que me entreguei por completo. Depois de os ler e reler, até me pareceram bem corridos e pouco enfadonhos. Chegaram a elogiar o “cunho pessoal” que eu lhes conseguia conferir. Será que o fazia mesmo? Se durante tanto tempo não soube de mim, talvez fosse o cunho pessoal de outra que criei. Esse sim, foi elogiado, mas eu estava por detrás disso tudo, num desassossego despercebido, pensando ideias bem distantes.
Já nem uma carta conseguia escrever. Uma simples carta! Quando me dediquei ao chamado penpalling, percebi o fascínio da troca de informações e sentimentos com desconhecidos de todo o mundo, que se nos vão tornando familiares a cada relato, a cada história segredada em tinta, a cada palavra cuidadamente desenhada num papel escolhido a dedo. E só de relembrar a desenvoltura com que escrevíamos histórias de aventuras, no teu sótão, quando éramos pequenas (lembras-te?), doem-me as páginas que estão amarelecidas por aí. Dizem que escreve quem tem mágoas profundas, como a Florbela, mas também dizem que a felicidade dá vontade de escrever e há, ainda, quem escreva só porque tem algo a dizer. Pois bem, eu não tinha nada a dizer porque não me sentia nem triste, nem contente. Não me sentia. Não sentia.
Hoje escrevo. Nem sei ao certo porque voltei a escrever. Não é por gáudio nem por tragédia. Apeteceu-me voltar a palavrar, mas desta vez não quero brincar com as palavras como se fossem morfemas soltos ou presos, com significação lexical precisa, embora oca. Quero, acima de tudo, cuspir emoções, gastar léxico na procura da razão, não de modo exaustivo, mas despretensiosamente. Sei agora que tenho muito para dizer, como qualquer alma viva, não só porque aprendi a pintar de outras cores o meu mundo, mas também porque vou aprendendo a conhecer o real valor das oportunidades, da família, dos amigos que vamos adquirindo, mantendo e perdendo ao longo da vida. Foi com o que perdi que aprendi a valorizar o que tenho. Acho que sempre foi assim desde que existe Mundo. Perdi amigos, todos eles por razões que, para mim, ainda fazem muito pouco sentido, outros conformam-se com a velha desculpa do “destino-de-cada-um” e há ainda os que vão relembrando a “grande tragédia”. Ainda mal recomposta, atravessei um dos períodos mais dolorosos e inexplicáveis (que hoje sei serem a dor de muitos outros) da minha pouco experiente existência, que culminou com a morte do meu Mestre, o meu avô. Digo inexplicável porque o espaço de longos meses não passou, na minha vaga percepção, de uma névoa difusa, curta e sentimentalmente absurda. Passada a fase do choro e dos “porquês”, decidi procurar respostas através das mais variadas pesquisas: curiosamente, quis saber o parecer de um capelão italiano que, apesar da sua convicção e do incrível dom de transmitir uma certa calma, acabou por me desapontar com o argumento de “ser a hora dele, porque o Senhor o chamou”; os médicos limitavam-se a mencionar a inevitabilidade e a proferir a mítica máxima consoladora que diz que “há que fazer um período de luto e depois toda a gente ultrapassa isso”; inconformada, decidi procurar informação nas obras de Kardec, tirando um curso de espiritismo, entusiasmada com a possibilidade da actual presença de entes queridos, mas os resultados foram pouco satisfatórios, as respostas extremamente vagas e acabei por ficar equivocada com estranhas semelhanças entre o espiritismo e certos dogmas da igreja católica. Ora, nada disto me sossegou nem tampouco esclareceu, ficando eu, pelo contrário, bastante mais confusa. Foi quando decidi enfrentar o passado e conviver com este presente que sou incapaz de mudar: durante meses, todos os dias, quase religiosamente, dirigia-me ao cemitério, (aquele que eu julgava temer de morte e no qual, afinal, me sinto agora à vontade porque conhecidos não me faltam) e ficava muito tempo diante de cada campa, recordava cada contorno de cada rosto, cada sorriso trocado, cada episódio hilariante, acendia uma vela, deixava uma flor, e vinha embora coberta de lágrimas de alma nova.
Tatuei no corpo a saudade dos que me são queridos, procurando anular uma dor com a outra, o que surtiu o seu efeito e, com a memória presente dos que se ausentaram e a força que me dão os que estão sempre presentes, sigo agora rio acima, contra a corrente, qual carpa robusta e alaranjada, que não teme lutar contra o destino. Estou a aprender a fazer rolar o pião da vida com tranquilidade, procurando com calma os girassóis que o avô me deu. Dá-me vontade de, num abraço sincero, apertar todos aqueles de quem gosto e fazê-los saber disso. Beijar a mãe e a avó e pedir-lhes que me contem histórias, que me mostrem fotografias, que me ensinem a cozinhar e a costurar, que me consigam transmitir a sua força inabalável de viver. No tempo de um beijo lexical, poder dizer tanto do amor ao meu amor, para que ele soubesse, tal como eu sei, que recordo cada segundo passado e que não há dia em que o ame menos do que no dia anterior. Em cada sorriso aberto, fazer notar aos amigos, um por um, como os admiro e aprecio por serem o que são, tal como são.
E tenho ideia que é mais ou menos esta a razão porque escrevo, senão a de me sentir eu de novo, do puro prazer de escrever, não para que os outros saibam, mas para que eu mesma saiba que eu sou eu, outra vez. Pode ter acontecido eu nunca ter deixado de o ser, tendo, apenas, estado adormecida pelas sensações durante um certo intervalo de tempo a que se poderia chamar incubação sensacional.
Já nem uma carta conseguia escrever. Uma simples carta! Quando me dediquei ao chamado penpalling, percebi o fascínio da troca de informações e sentimentos com desconhecidos de todo o mundo, que se nos vão tornando familiares a cada relato, a cada história segredada em tinta, a cada palavra cuidadamente desenhada num papel escolhido a dedo. E só de relembrar a desenvoltura com que escrevíamos histórias de aventuras, no teu sótão, quando éramos pequenas (lembras-te?), doem-me as páginas que estão amarelecidas por aí. Dizem que escreve quem tem mágoas profundas, como a Florbela, mas também dizem que a felicidade dá vontade de escrever e há, ainda, quem escreva só porque tem algo a dizer. Pois bem, eu não tinha nada a dizer porque não me sentia nem triste, nem contente. Não me sentia. Não sentia.
Hoje escrevo. Nem sei ao certo porque voltei a escrever. Não é por gáudio nem por tragédia. Apeteceu-me voltar a palavrar, mas desta vez não quero brincar com as palavras como se fossem morfemas soltos ou presos, com significação lexical precisa, embora oca. Quero, acima de tudo, cuspir emoções, gastar léxico na procura da razão, não de modo exaustivo, mas despretensiosamente. Sei agora que tenho muito para dizer, como qualquer alma viva, não só porque aprendi a pintar de outras cores o meu mundo, mas também porque vou aprendendo a conhecer o real valor das oportunidades, da família, dos amigos que vamos adquirindo, mantendo e perdendo ao longo da vida. Foi com o que perdi que aprendi a valorizar o que tenho. Acho que sempre foi assim desde que existe Mundo. Perdi amigos, todos eles por razões que, para mim, ainda fazem muito pouco sentido, outros conformam-se com a velha desculpa do “destino-de-cada-um” e há ainda os que vão relembrando a “grande tragédia”. Ainda mal recomposta, atravessei um dos períodos mais dolorosos e inexplicáveis (que hoje sei serem a dor de muitos outros) da minha pouco experiente existência, que culminou com a morte do meu Mestre, o meu avô. Digo inexplicável porque o espaço de longos meses não passou, na minha vaga percepção, de uma névoa difusa, curta e sentimentalmente absurda. Passada a fase do choro e dos “porquês”, decidi procurar respostas através das mais variadas pesquisas: curiosamente, quis saber o parecer de um capelão italiano que, apesar da sua convicção e do incrível dom de transmitir uma certa calma, acabou por me desapontar com o argumento de “ser a hora dele, porque o Senhor o chamou”; os médicos limitavam-se a mencionar a inevitabilidade e a proferir a mítica máxima consoladora que diz que “há que fazer um período de luto e depois toda a gente ultrapassa isso”; inconformada, decidi procurar informação nas obras de Kardec, tirando um curso de espiritismo, entusiasmada com a possibilidade da actual presença de entes queridos, mas os resultados foram pouco satisfatórios, as respostas extremamente vagas e acabei por ficar equivocada com estranhas semelhanças entre o espiritismo e certos dogmas da igreja católica. Ora, nada disto me sossegou nem tampouco esclareceu, ficando eu, pelo contrário, bastante mais confusa. Foi quando decidi enfrentar o passado e conviver com este presente que sou incapaz de mudar: durante meses, todos os dias, quase religiosamente, dirigia-me ao cemitério, (aquele que eu julgava temer de morte e no qual, afinal, me sinto agora à vontade porque conhecidos não me faltam) e ficava muito tempo diante de cada campa, recordava cada contorno de cada rosto, cada sorriso trocado, cada episódio hilariante, acendia uma vela, deixava uma flor, e vinha embora coberta de lágrimas de alma nova.
Tatuei no corpo a saudade dos que me são queridos, procurando anular uma dor com a outra, o que surtiu o seu efeito e, com a memória presente dos que se ausentaram e a força que me dão os que estão sempre presentes, sigo agora rio acima, contra a corrente, qual carpa robusta e alaranjada, que não teme lutar contra o destino. Estou a aprender a fazer rolar o pião da vida com tranquilidade, procurando com calma os girassóis que o avô me deu. Dá-me vontade de, num abraço sincero, apertar todos aqueles de quem gosto e fazê-los saber disso. Beijar a mãe e a avó e pedir-lhes que me contem histórias, que me mostrem fotografias, que me ensinem a cozinhar e a costurar, que me consigam transmitir a sua força inabalável de viver. No tempo de um beijo lexical, poder dizer tanto do amor ao meu amor, para que ele soubesse, tal como eu sei, que recordo cada segundo passado e que não há dia em que o ame menos do que no dia anterior. Em cada sorriso aberto, fazer notar aos amigos, um por um, como os admiro e aprecio por serem o que são, tal como são.
E tenho ideia que é mais ou menos esta a razão porque escrevo, senão a de me sentir eu de novo, do puro prazer de escrever, não para que os outros saibam, mas para que eu mesma saiba que eu sou eu, outra vez. Pode ter acontecido eu nunca ter deixado de o ser, tendo, apenas, estado adormecida pelas sensações durante um certo intervalo de tempo a que se poderia chamar incubação sensacional.
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