domingo, 20 de março de 2011

«José e Pilar» de Miguel Gonçalves Mendes


Fui ver José e Pilar com o desânimo de quem vai ver um filme de Manoel de Oliveira – o filme afigurava-se longo e, como vestia o rótulo de documentário, pré-concebi-o entediante. A sala enorme estava quase nua, mas rapidamente encheu nos primeiros minutos de filme, o que resultou numa desatenção da minha parte perante os créditos iniciais e as imagens introdutórias. Quando pude, finalmente, prestar a devida atenção ao que se passava na tela grande, rapidamente reconheci o erro do meu preconceito: ao contrário daquilo que penso, por norma, sobre quem escreve bem, o discurso de Saramago revelou-se claro e envolvente; a história de amor apregoada não trazia consigo um pingo de lamechice e a figura debilitada de um dos nomes maiores da literatura portuguesa era frequentemente amenizada pelos momentos de bom-humor caseiro de alguém que, mais do que escritor tardio, foi um homem com uma vida de homem, que se apaixonou humana e irremediavelmente e que questionava de modo contínuo, do ponto de vista de uma lucidez despida, o absurdo dos postulados da Igreja Católica, perante os quais a humanidade se vergou desde tempos imemoriais.

É um filme de momentos, de fragmentos que acompanham o processo de escrita d' A Viagem do Elefante, com todos os percalços incluídos, as consequentes e cansativas viagens de apresentação da obra, a dedicação à biblioteca, revelam-nos um Saramago de força e de garra, com uma sede insana de escrever (impondo a si mesmo a “obrigação” de escrever, pelo menos, duas páginas por dia), organizado e metódico, ainda assim surpreendentemente divertido para alguém que se descrevia a si mesmo como carrancudo.

Além da perspectiva de Saramago, é-nos fornecida a feminina, a de Pilar, “o seu pilar”, o incansável reverso da medalha, apreciadora maior do seu trabalho, seu braço direito, suas pernas muitas vezes. Pilar foi, tal como a escrita, na vida de Saramago, um bem tardio, um amor intenso. O homem que não temia a morte, afirmando a inexistência de um “céu” na ironia de um sorriso, queria apenas tempo, para escrever, viajar e amar, por não ter tido oportunidade de o fazer antes. As palavras vão brotando, perfeitas e simples, como ‘a casa’, como os pequenos prazeres, como a insistência em aportuguesar tudo, sinal do eterno amor à pátria, que era a sua língua.

Não há, em momento algum, tentativa de endeusamento do escritor e pensador, nem o aproveitamento do impacto da sua ainda recente morte. É cativante porque simples e perfeito, íntimo e divertido. Poderia prolongar-se por mais um par de horas, que não causaria enfado algum.

"Subi ontem à Montanha Blanca, lembro-me de ter pensado enquanto subia - se caio aqui,me mato, acabou-se, não farei mais livros - não liguei ao aviso a única coisa realmente importante que tinha para fazer naquele momento era chegar lá acima."

quinta-feira, 17 de março de 2011

After Dark - Os Passageiros da Noite


After Dark é o perfeito desenrolar de um novelo de histórias que se sucedem numa só noite. A inquietude e a solidão, a cidade que nunca dorme, a criminalidade, a sociedade japonesa, o crime organizado chinês, as relações sociais e os laços familiares, a música e o cinema, o sono, o sonho. Todos estes temas são abordados de modo ordenado e preciso, sucedendo-se e entrecortando-se, certos como ponteiros de relógio, tratados no momento oportuno da narração, alguns sobejamente desenvolvidos, outros apenas subtilmente sugeridos. Desta feita, Murakami aproxima o leitor da narrativa através de uma interessante adaptação de técnicas cinematográficas à descrição literária, permitindo-nos visualizar o cenário de um modo bem mais ‘real’ e palpável dentro daquilo que é o nosso próprio imaginário. Algumas páginas volvidas e torna-se impossível não reparar nos pequenos relógios desenhados no canto superior direito da página que inicia cada capítulo, indicando-nos a passagem do tempo com precisão.

«Five Points After Dark» como música de fundo. A descrição da paisagem urbana. Mari Asai encontra-se num café, fugida da pressão familiar que a tenra idade não suporta. É lá que se encontra com Takahashi, um músico de jazz que não resiste à tentação de abordar a jovem a propósito da sua bela irmã. É de Eri Asai que fala o músico, encantado, a irmã de Mari que havia anunciado aos pais, dois meses antes, que iria dormir por tempo indeterminado, mantendo-se num sono profundo até à data do relato. Logo depois, é-nos dada a perspectiva do quarto de Eri, todos os pormenores nos são fornecidos com uma extraordinária minúcia, mas é a televisão que subitamente se liga que nos prende a atenção: do lado de lá está o ‘homem sem rosto’, que a observa e vai entrando na realidade daquele quarto, de modo medonho. A nossa atenção volta-se de novo para Mari, cuja noite de evasão é interrompida por um outro percalço, chamada a intervir como tradutora numa situação que envolve um ‘hotel do amor’, propriedade de Kaoru, e uma situação de violência com uma prostituta chinesa. Outra badalada, outro cenário, outra situação: o escritório de Shirakawa, o trabalhador de colarinho branco, empenhado, reprimido, evacuado numa vida dupla. A noite segue o seu rumo e as histórias paralelas alternam-se de modo rigoroso e interessante ao ponto de se desejar mais. Os diálogos fluidos de Mari com o músico ou com a proprietária e empregadas do Hotel Alphaville conferem ritmo à obra quando intercalados com os momentos fortemente descritivos do sono aparentemente imperturbável de Eri e do percurso de Shirakawa. Ao fim da noite, todos os cenários se vão compondo, todas as personagens vão ganhando densidade, todas as histórias se vão enovelando, sem que o fio nunca quebre ou se perca, antes pelo contrário: todo e qualquer pormenor interessa, tudo converge para uma só madrugada.


http://www.youtube.com/watch?v=_BlHRPXPx-4