segunda-feira, 17 de agosto de 2009

ensinaram-me a dizer saudade

Tenho tido olhos de luto. Aquele olhar transparente através do qual se poderia ver uma alma, não estivesse ela vazia. Quem repara nos meus olhos com atenção não consegue parar de indagar-se e acaba por soltar a questão do costume: “Acabaste a licenciatura e estás de férias. Porque razão hás-de estar assim?”. Com alguma paciência lá respondo algo, é como uma tentativa de explicar aos outros aquilo que nunca hão-de compreender, é mostrar-lhes o Colosso de Rodes e verem um galo de Barcelos… Quando digo o que sinto, que foi o melhor ano lectivo de sempre em tantos anos de faculdade, que atingi as minhas metas e que conheci pessoas com quem criei laços muito fortes, tudo parece mínimo, a enormidade do que sinto reduz-se à pequenez das palavras ditas e perdidas no ar. Nem eu própria, que sei o que sinto e porquê, sei organizar as ideias de modo a que os outros me possam compreender mas, essencialmente, de modo a que eu possa compreender-me a mim mesma. Sempre ouvi dizer que, se um assunto é complexo e delicado, difícil de explicar, se deve começar pelo início. Volto atrás um ano na minha cabeça. Fecho os olhos e viajo no passado.
Era uma vez… Não é assim que as histórias bonitas devem começar? Então prossigamos. Era uma vez a Maria e a Francesca, duas raparigas sardas, de Sassari, primas entre si, diferentes como a noite do dia. Foi um amigo que mas apresentou num encontro no mítico Penedo da Saudade. Não pude deixar de olhar para a Maria em primeiro lugar. Os seus olhos grandes, os lábios carnudos, o cabelo perfeitamente negro, o sorriso rasgado e sincero, prenderam imediatamente a minha atenção. A Francesca tinha um rosto sereno, os olhos amendoados e o cabelo escorrido que lhe caía nos ombros.
Rapidamente se criou uma empatia e começaram as visitas a casa delas, os jantares, as noitadas de conversa útil, as palhaçadas universais. E fomos conhecendo mais e mais gente. Em casa da Maria e da Francesca moravam ainda a Arianna e duas espanholas, a Marta e a Diana. Pouco mais tarde apareceu o Pier Luigi e o Alessandro. Aos meus olhos, eles pareciam viver o erasmus como pai e filho, respectivamente, numa atmosfera de carinho e protecção. O Gigi tinha tudo aquilo que eu imaginava num italiano: bigodinho, camisas e pólos, pulseiras e colares, tinha uma vespa e via o Padrinho, pelo menos, duas vezes por semana. É de Lecce, ultra da equipa, um ‘bon vivant’, trabalha num bar paradisíaco numa praia paradisíaca. Lembro-me de como gostava de o ouvir falar, da voz colocada, das brincadeiras que fazia como locutor de rádio. E o Alessandro, que alma pura, era o nosso Peter Pan, não que não quisesse crescer, mas alguém que eu nunca vou imaginar crescido. Estava sempre pronto para mais um copo, mais sorriso, uma brincadeira, um jogo de setas. A Maurizia, uma miúda divertidíssima, com um modo de falar muito seu, o cabelo curto e laranja, sempre sempre sorridente. Já no segundo semestre, vieram o Marco e a Martina. Ele baixinho, brincalhão, olhos malandros, alinhava sempre no que quer que fosse, fazia as delícias de todos com as suas imitações perfeitas. A Martina era mais sossegada, alta e de cabelo negro que lhe batia nos ombros. Depois vieram o Maurino, o Mitch, a Aurélia, o Stefano e muitos amigos de amigos de amigos.
À tarde gostávamos de apanhar sol, tal foi o frio deste Inverno, e falávamos sobre tudos e nadas. As noites passavam-se com jantaradas e conversas amenas que muitas vezes acabavam em conversas bastante ébrias já na Sé Velha. Aprendi a fazer pasta a sério, coisas que nunca imaginei gostar, fiquei estupefacta com os dotes culinários do Gigi, delirávamos com licor de mirto, exclusivo da Sardenha, falávamos sobre tudo e mais alguma coisa, aprendemos italiano e eles português. Festejámos aniversários, exames que correram bem, notas de exames, bebíamos para animar em ocasiões de exames que tinham corrido mal. Não houve ano em que tivesse saído tantas vezes à noite e, ao mesmo tempo, também não me lembro de ter sido tão aplicada nos estudos como fui.
Queimadas as noites, e quase sem darmos conta, era chegada a hora das despedidas. Durante um mês despedi-me da boa vida que tinha levado e das grandes amizades que ficam cá dentro. A primeira “festa de despedida”, expressão que me começou a parecer um pouco ambígua, teve lugar no denominado ‘Catstelo’, uma casa enorme que, reconstruída, seria um palácio de sonho, mas na verdade era um prédio gigante e degradado onde morava cerca de meia centena de erasmus e duas senhoras portuguesas. A vida para elas não devia ser fácil, não sendo um castelo de conto de fadas, era um sítio mágico onde havia sempre festa, o que implicava sempre pasta, vinho e cerveja. A festa foi divertidíssima, nunca tinha estado numa casa tão cheia de gente, moradores e convidados eram mais de uma centena e eu era a estrangeira ali, o que nunca me deixou constrangida. Tínhamos uma relação especial, um grupo pequeno e sólido, portugueses e italianos em perfeita sintonia, e tudo se desmoronou com a partida do Gigi, deixando a cidade em lágrimas. Tudo ficou diferente a partir desse dia. A iminência das partidas apertava os nossos peitos e molhava-nos os olhos de saudade antecipada. Todas as despedidas me marcaram, cada uma de um modo diferente, ia perdendo pedaços de um pouco de vida vivida em conjunto.
Eu e a Maria não tivemos uma despedida. Fomo-nos despedindo. À medida que o tiquetaque aumentava o seu som, abraçávamo-nos e aprendíamos amizade. Quando se tornou ensurdecedor, o tiquetaque fez-nos chorar e limpávamos as lágrimas uma da outra como irmãs que tentam em vão limpar uma ferida aberta. Então ela partiu, a minha amiga, a minha irmã, companheira de um período feliz. Disse-lhe tanto e não lhe disse tudo. Na última noite corremos os bares habituais como se fosse um dia qualquer, mas os olhos da Maria não mentem e ela estava descorçoada, sem alma. No dia seguinte, na estação, faltavam-me as lágrimas nem sei porquê. Só quando a camioneta partiu se quebrou o pranto.
Continuo sem saber se foi a sorte, o destino ou somente a compatibilidade de nacionalidades que nos aproximou desta maneira. Sei apenas, e até sei muito e bem, que eles foram tão ou mais felizes aqui quanto eu fui, que os laços que criámos nunca se quebrarão, que parte de n+os foi com eles e parte deles ficou por aqui. Em cada badalada da cabra ouço a voz da Maria, o famoso ‘hiiiiii’ do Ale, os passos mansinhos da Fra, as piadas do Marco, o Gigi a repetir “Maria, prendi tu figlio”, os nossos risos no eco da madrugada. E assim, eu que sou nascida e criada em Coimbra, só este ano aprendi o verdadeiro significado de saudade, de vestir a capa negra e folhear memórias, do que escreveram os antigos nas placas do Penedo da Saudade, de ouvir a cabra e tremer a cada badalada. («um amigo a partir em cada letra»). Gosto de ter este olhar perdido nos nossos sorrisos de ontem, pousado nos nossos abraços, sossegado pelas promessas de visitas próximas.

sábado, 1 de agosto de 2009

«Não sei quantas almas tenho»


«Não sei quantas almas tenho.
Cada momento mudei.
Continuamente me estranho.
Nunca me vi nem acabei.
De tanto ser, só tenho alma.
Quem tem alma não tem calma.
Quem vê é só o que vê,
Quem sente não é quem é,
Atento ao que sou e vejo,
Torno-me eles e não eu.
Cada meu sonho ou desejo
É do que nasce e não meu.
Sou minha própria paisagem;
Assisto à minha passagem,
Diverso, móbil e só,
Não sei sentir-me onde estou.

Por isso, alheio, vou lendo
Como páginas, meu ser.
O que segue não prevendo,
O que passou a esquecer.
Noto à margem do que li
O que julguei que senti.
Releio e digo : "Fui eu ?"
Deus sabe, porque o escreveu.»

Fernando Pessoa